quinta-feira, 12 de julho de 2012

O BILHETE


Engoliu em seco, respirou fundo e procurou estancar ali mesmo a fluxo de memórias. Essa não era a hora para isso. Olhou para os dois lados antes de atravessar a grande avenida em frente ao hospital, tarefa difícil mesmo àquela hora, devido ao tráfego intenso do local. Chovia um pouco e isso combinava com o seu estado de espírito. Preparou-se mentalmente para o que iria encontrar, mas seus pensamentos estavam confusos. Um bilhete. Um nome do passado lhe trouxera até ali. Um passado do qual fizera absoluta questão de desligar-se, mas era em vão. Um fio invisível parecia puxá-lo de volta a um tempo e a uma vida que já não lhe pertencia, e por mais que resistisse, sentia-se inexoravelmente sugado a coisas e sensações que tentava olvidar.
A recepção cheia e o som de vozes em profusão, pessoas impacientes a exigir atenção e exclusividade para seus respectivos problemas lhe deu uma leve sensação de náusea. Era sempre assim quando se deparava com grandes grupos de pessoas. Preferia sempre estar sozinho em seu mundinho particular. Houve uma vez em que isso era muito diferente, mas isso foi... naquela vida anterior, a mesma que procurava deixar para trás, mas cujos tentáculos invisíveis o puxavam sempre como a dizer “isso é parte de você, sua identidade e sua história, e por mais que tente não vai conseguir livrar-se tão facilmente”. Interrompeu as conjecturas no momento em que a atendente lhe dirigiu palavra: “posso ajudá-lo, senhor?”
“Sim, procuro por um amigo. Ele deve estar internado aqui, seu nome é Walter Bandini.”
“Deixe-me ver, senhor. Um momento. Walter Bandini, sim, está na ala de recuperação de cirurgias. Sexto andar senhor, vou lhe dar um crachá de visitante. Seu nome, por favor.”
“Antonio Fontana.”
O olhar da recepcionista e das pessoas mais próximas foi de espanto. Um conjunto de pescoços virou de maneira sincronizada em direção a ele, ao ouvirem o nome. O chapéu, o casaco com a gola levantada, o par de óculos grandes, deixaram de ter o efeito de disfarçar o rosto do ator outrora famoso. Era sempre assim quando reconhecido. As pessoas o fitavam com um misto de reconhecimento e tentativa de localização de onde vinha esse sentimento. Do passado, das novelas de televisão, dos poucos filmes que protagonizara. De outra vida. De uma existência que tentava apagar e somente o bilhete mencionando a promessa o fizera mudar esta postura.
Com o crachá em mãos procurou pelos elevadores sentindo em sua nuca uma bateria de olhares curiosos. Jamais se acostumara com a abordagem de estranhos, a idéia de que conheciam mais a seu respeito e sua vida que ele próprio. Com os anos isso foi se espaçando, e já não lhe causava aborrecimentos. Às vezes, até gostava disso, lhe dava uma sensação que nem tudo em sua vida havia sido inútil, vazio.
Devia a visita a Walter, mas estava muito cansado mentalmente para liberar o fluxo de recordações. Queria fazer isso de maneira rápida e indolor. Umas poucas palavras, cumprir com sua obrigação e ir embora. Talvez cortar definitivamente o laço com aquele passado que fora, para o bem e para o mal a base e o alicerce de sua vida, por mais que tentasse evitar.
O corredor era grande, largo e bem iluminado. Muitas pessoas circulavam por ali e conseguiu passar despercebido. Quarto 608. Hesitou um pouco ao chegar à porta, mas esticou o braço e virou a maçaneta, sem bater. Walter estava sozinho na cama enorme, com uma espécie de esparadrapo no rosto e um tubo de soro espetado no braço esquerdo. Dormitava. Antonio aproximou-se com cuidado para não fazer barulho e fitou o rosto do amigo. As marcas dos anos estavam todas ali, expostas e sem disfarces. E que rosto! As rugas e os cabelos grisalhos lhe emprestavam uma aparência ainda mais impressionante que na juventude, quando era impossível não ser notado e admirado por sua beleza e distinção.
Suas pálpebras moviam-se compassadamente e parecia estar sonhando pela expressão embevecida de sua face. Antonio procurou uma cadeira e sentou-se ao do amigo, em silêncio. Entre eles sempre fora assim, palavras eram supérfluas, o entendimento fluía sem grandes esforços. Como puderam se afastar tanto? Como deixaram isso acontecer? Houve um tempo em que eram mais que amigos, irmãos. Dividiam sonhos, esperanças, planos para um futuro que brilhou apenas parcialmente, enfim. Mas a que preço? A descaracterização da personalidade, a negação de valores, a busca incessante por reconhecimento, por fama, pela glória. Eram tão amigos e tão diferentes. Entendia isso agora, de maneira tão clara!
Walter sempre fora o mais carismático, o mais belo, o líder da turma de amigos da pequena cidade em que viviam quando jovens. Todos eram sonhadores, tinham planos e projetos grandiosos. Apenas Antonio finalmente saiu em busca daqueles ideais que tinham em comum, sendo bem sucedido em boa parte deles. Os outros se casaram, engordaram, se acomodaram e de certa maneira, ficaram ressentidos com ele por ter obtido sucesso. Alguns sonhos são destinados a ser exatamente isso: sonhos. Quando colocados em prática, tornados realidade perdem a magia e a graça. Antonio transformara o sonho de fama e glória em uma realidade para si, o que acabou gerando um sentimento misto de admiração e inveja nos outros membros do grupo.
Não Walter. Este sempre incentivara o amigo e quando convidado a se juntar a este no Rio de Janeiro, sorria e dizia: “Isto não é para mim. Você e eu somos diferentes e esse é o seu mundo.” “Meu mundo!” pensava agora Antonio, imerso em suas memórias. Quantas vezes ele tivera a prova de que aquele mundo era tudo, menos seu? As viagens, as mulheres, as novelas de televisão, a fama nacional. Tudo aquilo parecia tão distante e artificial. Os casamentos, os filhos com quem mal tinha contato. A imagem pública.
Percebeu agora que pouco sabia da vida de seu amigo, tão preocupado estivera em tentar resolver a sua, sempre debaixo de holofotes e com pouca privacidade. Walter estava em sono profundo, mas sua expressão era boa. Uma enfermeira entrou pela porta, cumprimentou-o profissionalmente e tirou a pressão do paciente. Anotou algo em uma prancheta presa ao pé da cama e retirou-se em silêncio. Era jovem e com alivio, Antonio percebeu não ter sido reconhecido. Há muito preferia assim, passar incógnito pelas pessoas.
Imerso em suas recordações quase não percebeu a aproximação de alguém. Ouviu passos suaves quando a porta já havia sido fechada por dentro. Levantou seu rosto e tomou um susto: Heloísa, a sua Heloisa estava ali à sua frente! O tempo havia parado para ela, continuava a ter seus vinte e poucos anos. Não era possível! A jovem sorriu delicadamente, do mesmo jeito que Heloisa e disse: “ Papai esperava que viesse. Obrigada por isso. Ele vai ficar muito feliz!”
Ainda aturdido com aquela visão, Antonio balbuciou algumas palavras desconexas. Nesse momento, Walter acordou e disse: “Seu velho malandro, vai ficar aí jogando charme para minha filha também? Não respeita as filhas dos amigos?” Antonio, visivelmente emocionado, virou-se e fitou o amigo. Agora entendia tudo. Heloisa fora a razão da escolha de Walter. Ambos a amavam. Ambos eram rivais e os dois podiam ter sido os escolhidos. Perguntas há muito sem respostas começavam a ser respondidas. E nesses anos todos ele apenas pensara em si, na carreira, na fama. Pensava ter vivido o sonho e percebia agora que Walter o vivera de forma mais intensa e verdadeira.
Sentou-se ao lado da cama do amigo. Tanto para conversar, difícil começar! Os assuntos fluíam e Cibele, a linda clone de Heloisa sentou-se perto da janela, embevecida com a visão do pai animado, falante, como há muito não via.
Após alguns minutos, Walter chamou Cibele e lhe pediu para sair um pouco. Esta sorriu e disse que sim. Walter puxou o braço de seu amigo e pediu-lhe atenção. Antonio notou  que conforme falava, Walter ficava ofegante, parecia cansado e lhe disse para descansar um pouco. Walter retrucou: “ Não quero descansar, vou ter muito tempo para isso. Estou morrendo, você sabe.”
Antonio disse: “ Não seja bobo. Você está em um dos melhores hospitais do pais, com todos os recursos. Sempre foi dramático, pelo jeito não mudou.”
“Não. Eu tenho um câncer incurável e a operação apenas mitigou algo que não tem jeito. Não sei se estou preparado para morrer, nunca sabemos, mas depois da morte da minha Helô, acho que a idéia de juntar-me a ela, torna a morte mais palatável.”
Antonio olhou o amigo. A “sua” Helô. Era estranho ouvir isso, porque houvera um tempo em que Helô fora dele, Antonio. E ele fora dela, total e irracionalmente. Até o dia da partida para o Rio de Janeiro, acreditava que ela o seguiria, mas não aconteceu assim.
“Antonio, preciso que saiba de algo. Não posso morrer com esse segredo e apesar do tempo, sei que somos amigos.”
“Claro, Walter. Percebo agora que foi um erro ficar tão afastado de vocês e confesso, não sabia que Heloísa e você...”
Walter não o deixou concluir a frase: “Sim, nos casamos. E foi pouco depois de sua partida para o Rio. Eu não podia deixar a Helô grávida e sozinha, podia?”
Aquilo foi como um raio para Antonio! Agora compreendia tudo. Walter iria segui-lo para o Rio, haviam combinado de morar juntos, batalhar pela carreira unidos, como sempre. Após alguns meses uma carta curta, dizendo apenas que não o esperasse mais. Aquela carta o havia magoado e seguiu em frente, sempre planejando voltar á pequena cidade e saber do amigo porque desistira dos sonhos. Isso nunca acontecera afinal, o tempo era inclemente e teimava em passar muito rápido. Entendeu num átimo de segundo que Cibele era sua filha e que Walter se casara com Helô para protegê-la. Aquele gesto, o altruísmo contido nele foi maior que tudo o que Walter fizera em sua própria vida..
“Eu nunca contei a Cibele a verdade. Sinto-me o pai dela, a Helô quis assim, apesar de nunca ter deixado de te amar.”
“Ela nunca vai saber nada de mim. Você é o pai dela. Estarei por perto, caso ela precise de algo, mas o pai é você Walter.”
“Agora vá. Eu preciso descansar um pouco. Se puder, volte para me ver amanhã. Temos muito que conversar.”
“Vou sim, e certamente vou estar aqui amanhã. Obrigado pelo bilhete. Foi a melhor coisa que li em muitos anos, apesar das circunstâncias.”
Walter sorriu. “Você se lembra do que combinamos. Amigos para sempre. Bastava um chamar o nome do outro, lembra? Fiquei com medo que houvesse se esquecido, mas agora estou muito feliz que tenha vindo. Eu teria feito o mesmo por você.”
“Você fez muito, muito mais por mim. Volto amanhã, meu amigo.” Dizendo isso, Antonio despediu-se. Ao sair do quarto, avistou Cibele sentada num sofá perto da ampla janela do corredor. Lá fora a escuridão era quebrada pelas luzes da cidade grande. Aproximou-se da moça, que ainda o perturbava por sua incrível semelhança com a mãe e disse: “Ele precisa descansar um pouco. Eu volto amanhã querida. Somos amigos, você sabe...”
Ela sorriu. Sem palavras. Exatamente como a mãe. A promessa de um novo recomeço se desenhou naquele rosto bonito e sincero. Algo que buscou sempre, a verdade, estava ali, bem a sua frente. Sorriu de volta e foi para casa, apertando o bilhete no bolso do casaco.

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