segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Para ler e refletir: Uma obra prima do esquecido Dias da Costa




Alucinação

Dias da Costa

Dona Gertrudes abriu a guilhotina da boca e degolou o silêncio. Não fiquei admirado. Sabia que a sua língua era uma navalha. Não havia ninguém que lhe escapasse ao corte, nem existia reputação que não fosse golpeada por ela. Não me assombrei quando vi a cabeça do silêncio, separada do corpo minúsculo, rolar dos lábios de dona Gertrudes para o soalho, ali ficar batendo as pálpebras e agitando uma barbicha pontuda de sátiro.

Eu já não me espantava de nada. Na mesa, quando via os diabinhos andando por entre os pratos, ou quando, na água do meu copo, via boiar cabeças esquisitas, de dentes de lobo e contrações faciais mefistofélicas, contentava-me com sorrir. Pelo menos, eu julgava que sorria apenas. No entanto, todos olhavam para mim, assombrados. Minha mãe, muito pálida, ficava com o garfo no ar e uma tristeza ansiosa nos olhos. Meu pai, sem a sua rispidez antiga, perguntava-me se eu estava sentido alguma coisa. Minha tia rezava com o seu ar estagnado de água morta. Eu continuava a sorrir e levantava-me da mesa para não beber aquela água cheia de cabeças.

Dona Gertrudes continuou a falar. Minha mãe, por delicadeza, ouvia a enxurrada de maledicências que lhe saía da boca.

Pois fora um caso que espantara todo mundo. Constança... Que sonsa! Se fosse por necessidade... Mas com um marido daqueles, que lhe dava de um tudo... Somente porque o tipo se dizia poeta e andava recitando por toda parte, revirando os olhos e arrastando a voz. Aquilo chegava a ser indecente. Também, vamos e venhamos, o marido não estava pagando por inocente. Gostava de dar as suas unhadas e não deixava passar camarão pela malha...

– Imagine a senhora que uma vez tirou-se dos seus cuidados e veio me dizer uma pilhéria...

Dei uma gargalhada tão grande que dona Gertrudes parou, assustada. Eu vira dona Gertrudes nua, magra, cheia de ossos, peluda, de lunetas, o corpo cheio de diabinhos negros, convidando o sr. Gomes, marido de dona Constança, também despido, careca, apoplético, dentes podres à mostra, batendo na pança enorme palmadinhas de gozo, para dançar.

Minha mãe empalideceu e minha tia apertou nos dedos as contas do rosário preto. Dona Gertrudes fingiu-se alheada. Eu observava tudo e compreendia tudo. A palidez de minha mãe, a reza de minha tia, o alheamento de dona Gertrudes, julgavam-me doido. Eu, porém, sabia que estava completamente lúcido. Apenas via o que os outros não podiam ver. De repente, veio-me uma idéia. Se eu me fingisse de louco? Os diabinhos, que estavam agora em cima do piano, bateram palmas silenciosas, aprovando. Levantei-me e fui até a janela. No céu claro a lua sorria um sorriso canalha.

– Minha mãe, a lua está grávida. E sabe de quem é o filho? É meu...

Batia no peito, orgulhoso.

– A senhora vai ser avó...

Minha mãe começou a chorar. Decididamente, ela não compreendia a honra que eu lhe dava. Fiquei aborrecido.

– Vou passear.

Na rua, apalpei a coronha da pistola automática.

– Sete tiros seguros...

Os transeuntes voltavam-se para mim, olhando-me curiosos.

– Imbecis!

Fui andando entre a multidão. Olhei o relógio. Um diabinho fugiu do mostrador e entrou-me pela manga do paletó. Comecei a me sentir irritado com aquela perseguição.

– Ah! Vocês querem me aborrecer? Eu tenho uma pistola automática!

Sete tiros!

Automóveis passavam rápidos. Dentro, cadáveres conversavam. Sim, eram cadáveres. Eu sabia que o governador dera licença, naquele dia, para os defuntos passearem de automóvel. Meu avô passou numa limusine negra. Aproveitava a licença do governador. Coitado, ele bem o merecia! Dez anos enterrado ali no campo-santo... Irra!

Um garoto passou vendendo jornais. Chamei-o. Quando ele chegou perto de mim, fui-me embora sem comprar nenhum jornal. Sentia um peso enorme na cabeça. Compreendi que o diabinho que entrara pela manga do meu paletó penetrara no meu cérebro. Isso não era pilhéria. Fiquei irritado.

– Saia daí!

O homem gordo que olhava a vitrine fitou-me espantado e retirou-se cauteloso.

A cabeça começava a doer horrivelmente.

– Você por aqui?

Era Mariana. Apertei-lhe a mão. Ela sorria, feliz.

– Venha comigo até em casa.

No portão, ficamos parados, conversando. Mariana queixou-se por eu não ter aparecido na véspera. Estava zangado? Por quê? Não sei por que aquela pergunta irritou-me. A cabeça doía-me. Marteladas fortes se repetiam dentro do meu crânio. Era o diabinho. Também, se eu o pegasse de jeito...

– Por quê?

Apalpei a pistola no bolso. De repente, vi o diabinho nos lábios de Mariana. Fazia trejeitos de símio, agitava a cauda e ironicamente perguntava:

– Por quê?

Senti uma cólera enorme. Puxei a pistola e disparei duas vezes. Mariana caiu sem um grito.

No céu claro a lua sorria um sorriso canalha.

Fonte: Costa, F. M., org. 2009. Os melhores contos brasileiros de todos os tempos, 3ª edição. RJ, Ediouro.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

CURTA METRAGEM "A ALMA" VALE A PENA VER

Mais um exemplo de sensibilidade e talento em pequenas doses.

sábado, 4 de outubro de 2014

O INDULTO: FILME DE UMA BRAVA GENTE DE OURINHOS

Parabéns àqueles que vão à luta e fazem acontecer: no caso o pessoal da San Filmes de Ourinhos, São Paulo, que com baixíssimo orçamento produziu um filme de longa metragem. Partilho aqui um filme, pois eles autorizaram e não visam lucros financeiros.


domingo, 15 de julho de 2012

A CAUSA


 O homem de longos cabelos brancos demonstra especial interesse numa pequena nota de jornal deste outubro de 2003. “Governo cria comissão especial para investigar mortos e desaparecidos no Araguaia”. A idéia veio como um raio, pronta, embalada, de uma só vez! Era isso!
Deparou-se com um centro velho de São Paulo decadente e cheio de ambulantes e homens-placa. Trazia um pequeno papel com o endereço do que procurava e acabou encontrando afinal, um prédio antigo e mal cuidado. Entrou sem que ninguém lhe perguntasse aonde ia, e no pequeno escritório do terceiro andar, o homem de olhar desconfiado o atendeu. Vamos descer meu camarada, falamos na rua. Sem entender, seguiu o outro pelas escadas abaixo, e então para a rua.
“Posso lhe conseguir os documentos que quer, mas claro, tudo tem um preço.” A afirmação seguida de um sorrisinho cínico, enfatizada pelo bigodinho “a la” Cantinflas do personagem à sua frente não ajudou muito a melhorar seu estado de espírito.
“Vou pensar, mas antes quero saber o quanto custa”.
“Farei um desconto especial para você, em nome de sua amizade com o Boró. Cinco mil. Por tudo.”
“Cinco mil está caro!”
“Uma pechincha. Uma pechincha. E o resto do processo é rápido, sempre se conhece alguém que facilite as coisas.”
“Essa parte eu sei. Está bem. O que você precisa?”
“A grana. O resto a gente inventa, cria. Metade a vista e o resto na entrega. Passar bem.”
Afastou-se rapidamente e perdeu-se entre os transeuntes daquele comecinho de noite na movimentada praça no centro de São Paulo. O homem mais velho ficou parado ali, por um tempo, refletindo no que estava prestes a fazer e concluiu que isso não era diferente de muitas coisas que fizera a vida toda. Iria seguir com o plano, seja o que Deus quiser! Precisava arrumar o dinheiro, mas para isso podia contar com Alzirinha.


1968.

Dentro do pequeno apartamento, nos arredores da cidade de São Paulo um grupo de jovens confabula animadamente, ainda que em voz baixa. Planejam uma ação ousada para angariar fundos para sua causa. São inconseqüentes, ousados e inexperientes. Seu líder é Flavio Dalmas, um estudante de Direito do Largo de São Francisco. Sua noiva, Maria Helena Jordão, uma mulher madura na faixa dos 30 anos e muito atraente, estava ao lado, como sempre. Antonio Xavier França é o seu melhor amigo e também está presente. Outros integrantes conversam e entre eles destaca-se um novato, primo órfão de Maria Helena, Bernardo Osório Jordão. Um pouco mais novo que os demais, de estatura mediana, cabelos lisos, usa um topete á moda de Elvis, e aparenta bem menos que os vinte e dois anos que alega ter. No começo Flavio não queria usá-lo, mas foi o próprio Bernardo quem argumentou que com sua aparência de adolescente, poderia infiltrar-se com mais facilidade em certos ambientes. Fazia sentido, afinal.
O plano era simples: seqüestrar um industrial importante, exigir uma alta soma á título de resgate e enviar o dinheiro para os companheiros perdidos nas selvas do Araguaia. Simples na teoria, claro, mas quem iria dizer isso àqueles jovens tão cheios de entusiasmo e animação?
A sorte conspira a favor. Batem à porta, alguém vai atender e volta acompanhado do “japonês”. Esse é um dos mais enigmáticos integrantes do grupo, sempre chega atrasado, e vai embora antes dos demais. Traz consigo uma edição da “Folha da Noite”, recém saído das prensas.
“Tenho aqui o nosso alvo, olhem: um figurão mexicano, executivo de uma multinacional americana de carros, o sujeito é um exibicionista e abriu sua casa para a repórter da seção “Lares de Sonho”.
Todos olham para o jornal e realmente está tudo ali: os sofás caríssimos, os quadros nas paredes, a piscina, as trocas de roupa da cafonérrima esposa, com um vestido diferente em cada foto, os cachorrinhos pequenos, até mesmo o endereço da tal mansão.
Então era isso. Planejamento rápido, ação contundente e sorte de principiante. Eis que em menos de uma semana, do início ao fim, aquele grupo de jovens mal saídos da puberdade conseguem perpetrado uma das mais audaciosas e bem sucedidas operações criminosas até então no país. Não foi preciso usar violência e a grande corporação providenciou o pagamento do resgate rapidamente. Mal acreditavam que a coisa havia sido tão fácil!
Aquela grande e pesada sacola de lona, recheada de dólares, ficou debaixo da cama do apartamento por quase dez dias, até decidirem como enviar o fruto de sua ação para os companheiros no norte do país. Eventualmente, Bernardo foi o escolhido, justamente por sua aparência de menino. Ele que na última hora não pudera participar diretamente da ação de seqüestro, acometido de terríveis cólicas, agora poderia ser útil afinal. Traçou-se um roteiro complicado, que envolvia uma viagem de ônibus até Salvador, com paradas no caminho, e de lá para Belém de navio. Numa segunda feira de manhã, Maria Helena, dirigindo o fusca branco de Flavio, deixou Bernardo na rodoviária com suas malas e aparência de colegial de férias.

2008

O elegante gabinete do Ministério da Justiça, na esplanada dos Ministérios em Brasília, com sua decoração sóbria e amplas janelas, abriga mais uma reunião de rotina. O poderoso assessor do Ministro, homem em seus cinqüenta e poucos anos, bronzeado e muito bem disposto, atende pelo nome de Francisco Pavuna. Militante de importante partido de esquerda ascendeu ao poder graças aos seus dotes de negociador moderado, ainda que firme. Sua diplomacia, sua elegância, seu domínio de vários idiomas fazem dele um ser quase anacrônico numa militância que às vezes extravasa a simplicidade de suas respectivas origens.. Neste momento estão a discutir as polêmicas indenizações dadas aos ex-combatentes da ditadura militar que governou o país nas décadas de sessenta e 70. Dezenas de processos estão dispostos em pilhas numa mesa ao lado, e um funcionário relata a situação de cada pessoa, seu envolvimento, suas prisões, o valor a ser concedido.
Francisco Pavuna é sempre um dos mais comedidos e toma notas cuidadosamente em sua agenda de capa de couro preta. Alguns nomes lhe são familiares, de anos passados, de outra vida, parece. A voz do relator começa a ficar monótona e é sempre a mesma seqüência: “Processo número 214/2002 de Agnaldo Beirão contra a União. Agnaldo... e continua. Processo número 215/2002 de Gerson Rodrigues França contra a União.”
Francisco olha para fora da imensa janela, e pensa em sua casa à beira do lago. Está ansioso pelo final de semana, onde poderá finalmente ter um descanso. Não pode se queixar: tem status, um bom emprego, dinheiro e o respeito das pessoas.
“Processo número 216/2002 família de Bernardo Osório Jordão contra a União.” Francisco deu um pulo na cadeira! Aquilo não era possível, aquele nome não existia mais! Tentou parecer natural e pediu para que o relator passasse a pasta a ele após a leitura. Segurou-a com força, com as mãos suando e pediu licença, dirigindo-se a seu gabinete no mesmo andar. Um fluxo de memórias invadiu sua mente trazendo uma sensação muito desconfortável. Começou a suar frio, temendo ter um ataque cardíaco ali mesmo. Procurou controlar-se, tinha que descobrir quem estava por trás daquele embuste. Quem era a família? Abriu a pasta com o processo e constava apenas um nome de mulher, Cristina Jordão, 41 anos, filha. Como era possível? Bernardo não tinha filha alguma, alguém estava tentando aplicar um golpe. Precisava localizar esta Cristina. Não havia número de telefone, mas sim um endereço em Bertioga, litoral norte de São Paulo. Cancelou seus compromissos para o resto da semana e tomou o primeiro vôo para a capital paulista. Chegando ao Aeroporto de Congonhas, dirigiu-se ao guichê de uma locadora de carros e pediu um modelo popular, não queria chamar a atenção. Tomou um café e adquiriu um mapa rodoviário na banca de revistas do Aeroporto, enquanto o carro era preparado.
Entrou no pequeno Gol branco e dirigiu-se para a Avenida Bandeirantes, e dali para a rodovia Imigrantes. Fazia anos que não vinha para aqueles lados, pelo menos de carro, de helicóptero tudo era muito mais fácil.
Bertioga é uma cidade pequena, em vias de desenvolvimento á beira mar. O endereço dizia: Avenida Anchieta. Não foi difícil localizar a antiga estrada que corta a cidadezinha paralelamente ao mar. Sua ansiedade aumentava muito. A pequena casa era no fundo de um terreno grande. Parou o carro, observou se não havia cachorros e abriu o portão. Havia um carro antigo parado na frente e nenhum sinal de vida. Avançou alguns passos em direção a casa e bateu palmas. Ouviu ruídos do lado de dentro e mal pode acreditar quando viu quem o atendeu:
“Você?” exclamou atônito.
“Sim, Bernardo. Pensou que eu havia morrido também?”
Francisco/Bernardo encarou Flavio, seu velho companheiro de guerrilha. Flavio disse:
“Fugir com o nosso dinheiro foi uma péssima idéia. E dizem que entregou os companheiros para os militares também.”
Bernardo mal conseguia respirar. Retrucou: “Eu admito ter fugido com o dinheiro. Mas havia pouco mais de dez por cento naquela mala. Nunca entreguei ninguém, juro. Tive uma oportunidade de viajar para a Europa e fui, mas jamais dedurei ninguém. Você precisa acreditar nisso.”
Flavio disse: “Não fique parado aí fora, entre, vamos.”
Bernardo hesitou um pouco, temia pela sua vida, mas não viu alternativa. A casa era modesta, mas espaçosa e confortável.
“Como posso conceder uma pensão á uma filha que jamais tive?” Como posso anistiar a mim mesmo? Que tipo de brincadeira é essa?”
“Brincadeira nenhuma, Bernardo. Apesar das plásticas que fez, sua vaidade o levou a perder-se. Reconheci-o em uma das entrevistas que deu à televisão. Quem é Francisco Pavuna afinal?”
“É alguém que conheci no exterior e que morreu muito jovem. Não tinha família, poucos amigos, nada que chamasse a atenção. Retornei ao Brasil antes da anistia e precisava de uma identidade segura. Suponho que agora você vá me entregar ou querer algo pelo meu segredo?”
“Você esta enganado, Bernardo. Você já me deu muito mais do que imagina. E vai conceder a pensão á Cristina, que de qualquer forma virá parar em meus bolsos. Seu segredo e sua vidinha de jatos e viagens estão seguros.”
“E quanto a você, Flavio?” Bernardo recuperou um pouco de sua frieza. “O que fez durante esses anos todos?”
“Bernardo, vive-se muito bem na Suécia com algumas centenas de milhares de dólares. Mas infelizmente o dinheiro acaba, paga-se impostos, e as mulheres européias são caras.”
Bernardo olhou bem o ex-amigo. Não sabia se sentia nojo ou pena daquele homem parado a sua frente, tão diferente do jovem idealista que outrora conhecera. Entregara os próprios companheiros ao ser preso. Roubara o dinheiro e traíra a causa.
“E a causa, Flavio?”
“A causa somos nós, Bernardo. Sempre somos a causa. Os anos passam, o mundo muda, e todos querem cuidar de si mesmos e dos seus. Você precisou de um novo nome, um novo rosto e uma nova identidade. Qual era a sua causa afinal? Eu fui preso, torturado e admito, acabei falando mais que devia. Estávamos todos condenados, você sabe disso. Mas havia o dinheiro e ele passou a ser meu por direito, pelas cicatrizes que vou carregar para sempre.”
Bernardo sentou-se. Preferia ser Francisco, afinal. Daria a pensão a uma filha inexistente para manter o segredo fechado. Uma causa pode ter preços e conseqüências. E alguém, em algum lugar tem que pagar por eles. Só não estava seguro se tudo aquilo fazia algum sentido. Sentiu-se oco e desprovido de propósito. Levantou-se e disse a Flavio:
“Fique tranqüilo. Sua causa não vai te abandonar agora. Vou providenciar para que tudo corra a contento.”
Virou-se e partiu. Iria anistiar um morto que era ele mesmo. Um ser que talvez jamais tivesse existido de verdade. Sentiu-se um pouco morto também. Talvez estivesse mesmo. Sentiu saudades do jovem idealista que fora há muitos anos. O mar continuava a empurrar as ondas contra a areia e estas teimavam em retornar para o fundo. O fluxo das marés explica muito das vontades dos homens.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O BILHETE


Engoliu em seco, respirou fundo e procurou estancar ali mesmo a fluxo de memórias. Essa não era a hora para isso. Olhou para os dois lados antes de atravessar a grande avenida em frente ao hospital, tarefa difícil mesmo àquela hora, devido ao tráfego intenso do local. Chovia um pouco e isso combinava com o seu estado de espírito. Preparou-se mentalmente para o que iria encontrar, mas seus pensamentos estavam confusos. Um bilhete. Um nome do passado lhe trouxera até ali. Um passado do qual fizera absoluta questão de desligar-se, mas era em vão. Um fio invisível parecia puxá-lo de volta a um tempo e a uma vida que já não lhe pertencia, e por mais que resistisse, sentia-se inexoravelmente sugado a coisas e sensações que tentava olvidar.
A recepção cheia e o som de vozes em profusão, pessoas impacientes a exigir atenção e exclusividade para seus respectivos problemas lhe deu uma leve sensação de náusea. Era sempre assim quando se deparava com grandes grupos de pessoas. Preferia sempre estar sozinho em seu mundinho particular. Houve uma vez em que isso era muito diferente, mas isso foi... naquela vida anterior, a mesma que procurava deixar para trás, mas cujos tentáculos invisíveis o puxavam sempre como a dizer “isso é parte de você, sua identidade e sua história, e por mais que tente não vai conseguir livrar-se tão facilmente”. Interrompeu as conjecturas no momento em que a atendente lhe dirigiu palavra: “posso ajudá-lo, senhor?”
“Sim, procuro por um amigo. Ele deve estar internado aqui, seu nome é Walter Bandini.”
“Deixe-me ver, senhor. Um momento. Walter Bandini, sim, está na ala de recuperação de cirurgias. Sexto andar senhor, vou lhe dar um crachá de visitante. Seu nome, por favor.”
“Antonio Fontana.”
O olhar da recepcionista e das pessoas mais próximas foi de espanto. Um conjunto de pescoços virou de maneira sincronizada em direção a ele, ao ouvirem o nome. O chapéu, o casaco com a gola levantada, o par de óculos grandes, deixaram de ter o efeito de disfarçar o rosto do ator outrora famoso. Era sempre assim quando reconhecido. As pessoas o fitavam com um misto de reconhecimento e tentativa de localização de onde vinha esse sentimento. Do passado, das novelas de televisão, dos poucos filmes que protagonizara. De outra vida. De uma existência que tentava apagar e somente o bilhete mencionando a promessa o fizera mudar esta postura.
Com o crachá em mãos procurou pelos elevadores sentindo em sua nuca uma bateria de olhares curiosos. Jamais se acostumara com a abordagem de estranhos, a idéia de que conheciam mais a seu respeito e sua vida que ele próprio. Com os anos isso foi se espaçando, e já não lhe causava aborrecimentos. Às vezes, até gostava disso, lhe dava uma sensação que nem tudo em sua vida havia sido inútil, vazio.
Devia a visita a Walter, mas estava muito cansado mentalmente para liberar o fluxo de recordações. Queria fazer isso de maneira rápida e indolor. Umas poucas palavras, cumprir com sua obrigação e ir embora. Talvez cortar definitivamente o laço com aquele passado que fora, para o bem e para o mal a base e o alicerce de sua vida, por mais que tentasse evitar.
O corredor era grande, largo e bem iluminado. Muitas pessoas circulavam por ali e conseguiu passar despercebido. Quarto 608. Hesitou um pouco ao chegar à porta, mas esticou o braço e virou a maçaneta, sem bater. Walter estava sozinho na cama enorme, com uma espécie de esparadrapo no rosto e um tubo de soro espetado no braço esquerdo. Dormitava. Antonio aproximou-se com cuidado para não fazer barulho e fitou o rosto do amigo. As marcas dos anos estavam todas ali, expostas e sem disfarces. E que rosto! As rugas e os cabelos grisalhos lhe emprestavam uma aparência ainda mais impressionante que na juventude, quando era impossível não ser notado e admirado por sua beleza e distinção.
Suas pálpebras moviam-se compassadamente e parecia estar sonhando pela expressão embevecida de sua face. Antonio procurou uma cadeira e sentou-se ao do amigo, em silêncio. Entre eles sempre fora assim, palavras eram supérfluas, o entendimento fluía sem grandes esforços. Como puderam se afastar tanto? Como deixaram isso acontecer? Houve um tempo em que eram mais que amigos, irmãos. Dividiam sonhos, esperanças, planos para um futuro que brilhou apenas parcialmente, enfim. Mas a que preço? A descaracterização da personalidade, a negação de valores, a busca incessante por reconhecimento, por fama, pela glória. Eram tão amigos e tão diferentes. Entendia isso agora, de maneira tão clara!
Walter sempre fora o mais carismático, o mais belo, o líder da turma de amigos da pequena cidade em que viviam quando jovens. Todos eram sonhadores, tinham planos e projetos grandiosos. Apenas Antonio finalmente saiu em busca daqueles ideais que tinham em comum, sendo bem sucedido em boa parte deles. Os outros se casaram, engordaram, se acomodaram e de certa maneira, ficaram ressentidos com ele por ter obtido sucesso. Alguns sonhos são destinados a ser exatamente isso: sonhos. Quando colocados em prática, tornados realidade perdem a magia e a graça. Antonio transformara o sonho de fama e glória em uma realidade para si, o que acabou gerando um sentimento misto de admiração e inveja nos outros membros do grupo.
Não Walter. Este sempre incentivara o amigo e quando convidado a se juntar a este no Rio de Janeiro, sorria e dizia: “Isto não é para mim. Você e eu somos diferentes e esse é o seu mundo.” “Meu mundo!” pensava agora Antonio, imerso em suas memórias. Quantas vezes ele tivera a prova de que aquele mundo era tudo, menos seu? As viagens, as mulheres, as novelas de televisão, a fama nacional. Tudo aquilo parecia tão distante e artificial. Os casamentos, os filhos com quem mal tinha contato. A imagem pública.
Percebeu agora que pouco sabia da vida de seu amigo, tão preocupado estivera em tentar resolver a sua, sempre debaixo de holofotes e com pouca privacidade. Walter estava em sono profundo, mas sua expressão era boa. Uma enfermeira entrou pela porta, cumprimentou-o profissionalmente e tirou a pressão do paciente. Anotou algo em uma prancheta presa ao pé da cama e retirou-se em silêncio. Era jovem e com alivio, Antonio percebeu não ter sido reconhecido. Há muito preferia assim, passar incógnito pelas pessoas.
Imerso em suas recordações quase não percebeu a aproximação de alguém. Ouviu passos suaves quando a porta já havia sido fechada por dentro. Levantou seu rosto e tomou um susto: Heloísa, a sua Heloisa estava ali à sua frente! O tempo havia parado para ela, continuava a ter seus vinte e poucos anos. Não era possível! A jovem sorriu delicadamente, do mesmo jeito que Heloisa e disse: “ Papai esperava que viesse. Obrigada por isso. Ele vai ficar muito feliz!”
Ainda aturdido com aquela visão, Antonio balbuciou algumas palavras desconexas. Nesse momento, Walter acordou e disse: “Seu velho malandro, vai ficar aí jogando charme para minha filha também? Não respeita as filhas dos amigos?” Antonio, visivelmente emocionado, virou-se e fitou o amigo. Agora entendia tudo. Heloisa fora a razão da escolha de Walter. Ambos a amavam. Ambos eram rivais e os dois podiam ter sido os escolhidos. Perguntas há muito sem respostas começavam a ser respondidas. E nesses anos todos ele apenas pensara em si, na carreira, na fama. Pensava ter vivido o sonho e percebia agora que Walter o vivera de forma mais intensa e verdadeira.
Sentou-se ao lado da cama do amigo. Tanto para conversar, difícil começar! Os assuntos fluíam e Cibele, a linda clone de Heloisa sentou-se perto da janela, embevecida com a visão do pai animado, falante, como há muito não via.
Após alguns minutos, Walter chamou Cibele e lhe pediu para sair um pouco. Esta sorriu e disse que sim. Walter puxou o braço de seu amigo e pediu-lhe atenção. Antonio notou  que conforme falava, Walter ficava ofegante, parecia cansado e lhe disse para descansar um pouco. Walter retrucou: “ Não quero descansar, vou ter muito tempo para isso. Estou morrendo, você sabe.”
Antonio disse: “ Não seja bobo. Você está em um dos melhores hospitais do pais, com todos os recursos. Sempre foi dramático, pelo jeito não mudou.”
“Não. Eu tenho um câncer incurável e a operação apenas mitigou algo que não tem jeito. Não sei se estou preparado para morrer, nunca sabemos, mas depois da morte da minha Helô, acho que a idéia de juntar-me a ela, torna a morte mais palatável.”
Antonio olhou o amigo. A “sua” Helô. Era estranho ouvir isso, porque houvera um tempo em que Helô fora dele, Antonio. E ele fora dela, total e irracionalmente. Até o dia da partida para o Rio de Janeiro, acreditava que ela o seguiria, mas não aconteceu assim.
“Antonio, preciso que saiba de algo. Não posso morrer com esse segredo e apesar do tempo, sei que somos amigos.”
“Claro, Walter. Percebo agora que foi um erro ficar tão afastado de vocês e confesso, não sabia que Heloísa e você...”
Walter não o deixou concluir a frase: “Sim, nos casamos. E foi pouco depois de sua partida para o Rio. Eu não podia deixar a Helô grávida e sozinha, podia?”
Aquilo foi como um raio para Antonio! Agora compreendia tudo. Walter iria segui-lo para o Rio, haviam combinado de morar juntos, batalhar pela carreira unidos, como sempre. Após alguns meses uma carta curta, dizendo apenas que não o esperasse mais. Aquela carta o havia magoado e seguiu em frente, sempre planejando voltar á pequena cidade e saber do amigo porque desistira dos sonhos. Isso nunca acontecera afinal, o tempo era inclemente e teimava em passar muito rápido. Entendeu num átimo de segundo que Cibele era sua filha e que Walter se casara com Helô para protegê-la. Aquele gesto, o altruísmo contido nele foi maior que tudo o que Walter fizera em sua própria vida..
“Eu nunca contei a Cibele a verdade. Sinto-me o pai dela, a Helô quis assim, apesar de nunca ter deixado de te amar.”
“Ela nunca vai saber nada de mim. Você é o pai dela. Estarei por perto, caso ela precise de algo, mas o pai é você Walter.”
“Agora vá. Eu preciso descansar um pouco. Se puder, volte para me ver amanhã. Temos muito que conversar.”
“Vou sim, e certamente vou estar aqui amanhã. Obrigado pelo bilhete. Foi a melhor coisa que li em muitos anos, apesar das circunstâncias.”
Walter sorriu. “Você se lembra do que combinamos. Amigos para sempre. Bastava um chamar o nome do outro, lembra? Fiquei com medo que houvesse se esquecido, mas agora estou muito feliz que tenha vindo. Eu teria feito o mesmo por você.”
“Você fez muito, muito mais por mim. Volto amanhã, meu amigo.” Dizendo isso, Antonio despediu-se. Ao sair do quarto, avistou Cibele sentada num sofá perto da ampla janela do corredor. Lá fora a escuridão era quebrada pelas luzes da cidade grande. Aproximou-se da moça, que ainda o perturbava por sua incrível semelhança com a mãe e disse: “Ele precisa descansar um pouco. Eu volto amanhã querida. Somos amigos, você sabe...”
Ela sorriu. Sem palavras. Exatamente como a mãe. A promessa de um novo recomeço se desenhou naquele rosto bonito e sincero. Algo que buscou sempre, a verdade, estava ali, bem a sua frente. Sorriu de volta e foi para casa, apertando o bilhete no bolso do casaco.

terça-feira, 10 de julho de 2012

AMORES VULNERÁVEIS



Epístola Primeira

Amor,

Sinto-me mal, mas não havia outra maneira de lhe dizer isso. Não posso mais. Estou arrasado e imagino que estejas também. Mas alguém tem que ceder e eu sou esse alguém. Saio antes que os danos sejam irreversíveis. Melhor assim? Não sei. Não tenho uma bola de cristal, mas imagino que a solução seja a mais correta.  Aliás, dane-se o correto, o certinho, as coisas justas. Você me ensinou a ser assim: “A transgredir, por mais que me custe”. “Sair dos trilhos”, você sempre prega.
Hoje estou mais leve. Imensamente aliviado. Dói ainda e vai doer por um bom tempo, suspeito. Mas a compensação em ter a consciência em paz me diz que a médio prazo, estarei bem. Estaremos bem. Você e eu, cada qual em seu caminho, trilhando seu destino, buscando sua cara metade. Quase encontramos, estávamos prestes a formar o encaixe perfeito, tipo um cubo mágico, quando algo se rompeu. Rompeu-se, entende? Não há cola no mundo que possa remendar essa fissura.
Não vou mais tomar seu tempo. Espero que me perdoe e me esqueça. Eu já perdoei e saberei esquecer. Time after time, diz aquela velha canção. O tempo vai curar tudo. E vai lavar as mágoas. Sei que estou parecendo uma colagem de frases retiradas de pára-choques de caminhão, mas não consigo ser original hoje.
Beijos,

João.

Epístola Segunda

Amor,

Resolvi voltar atrás e te pedir perdão. Que reconsidere minha carta anterior e entenda que quando a escrevi estava em profundo estado de depressão. Não havia superado a perda e tampouco havia aprendido a perdoar. Acredite, agora eu sei. Mudei, sou um novo homem e espero que me dê uma nova chance. Vamos fazer o seguinte: passamos uma borracha no passado e começamos do zero. Podemos até fingir que não nos conhecemos, você chega ao Jimmi’s Bar com seu cabelo molhado e seu jeitinho meio atrapalhado (e adorável), e derruba uma taça de vinho da casa em minha calça nova (de novo). Eu compro outra. Vale a pena ver sua carinha linda e confusa e sua expressão de querer compensar algo. Adoro esse seu jeitinho compungido de fazer as coisas. Vai avançando, atropelando, mas ao primeiro obstáculo, recua, pede desculpas, mostra sua verdadeira personalidade. Doce e intensa. Amor, não consigo te chamar de outra coisa, volte.

Seu, João.

Epístola Terceira

Amor,

Esperei dois dias inteiros e nada. Ou como dizia Erasmo na música “já fumei um cigarro e meio e Narinha não veio”. Minha vida parou. Sem você, ela não tem mais sentido. Preciso ouvir tua voz, nem que seja para me atingir, ofender. Como da última vez que brigamos e seus gritos acordaram os vizinhos. Pior foi explicar ao policial com quem eu havia estudado no colegial que não íamos nos matar, no meio daquela cena dantesca de móveis quebrados e objetos espalhados pela sala do apartamento.
Vou ser sincero: não consigo viver sem você. Até o ar que respiro,  precisa de você para ser efetivo e me manter vivo. Repassei mentalmente, como quem revê um velho filme favorito, toda a nossa história. Valeu muito a pena. Vale muito você me perdoar. Desta vez eu vou mudar, prometo. Tentei ligar, mas ninguém atende. Confesso: liguei na casa de sua mãe, mas pela frieza que senti dela, acho que ela não te deu o recado.
Estou aqui, seu e seu.

Muito seu, João.

Epístola Quarta

Amor,

Não consigo mais respirar. Meu peito arde e me falta ar. Não vou trabalhar há três ou quatro dias. Acho que emagreci um bocado, perdi o apetite. Não faço a barba há um tempo. Acho que ficou legal, lembra que você sempre me pediu para deixar a barba, como o George Clooney naquele filme? E que eu, por ciúmes, falei que ele era gay, que o filme era uma merda (e é mesmo, mas foi despeito)? Anjo: para de me torturar assim. Vamos fazer um trato: saímos para um café. Só preciso que você me dê meia hora, me ouça. Toda questão tem dois ou mais lados. Vou te mostrar que nossa historia só tem um desenlace: nossa felicidade juntos.
Sabe que sinto falta de tudo? De nossas brigas. Da sua mania de me censurar sem palavras. Do seu olhar severo, onde arqueia as sobrancelhas e os olhos ficam mais escuros e parecem duas jabuticabas. Sinto falta de você demorar horas no banho e eu reclamar do absurdo da conta de luz.


Seu, seu e só seu, João.

Epístola Quinta

Amor,

Entendi agora. Você quer me torturar cruelmente. Matar-me de inanição. Pois bem, conseguiu! Pare agora. Destruiu meu ego, assim como um sargento sádico faz com uma tropa de recrutas inseguros e imberbes. Jogo-me a teus pés. Rendo-me incondicionalmente. Defina seus termos que minhas tropas capitulam incontinenti! Já entendi o teor de seu silêncio. Ele é a mais atroz demonstração de seu desprezo. Mesmo assim, rastejo até você. Aceite minha rendição sem honra e dite as condições que quiser. Estou magro, barbudo, insociável. Você é minha religião, minha razão de viver, minha obsessão, quiçá a razão de morrer. Responda, por favor.

Inteiramente seu, João.

Epístola Sexta

Amor,


Não mais voltarei a te incomodar com minhas lamúrias. Tomei uma decisão e não volto atrás. Esta é uma carta de despedida. Não saio de casa há dias, não leio os jornais, não ligo a tevê, e nem escuto o rádio. Antes caminhava até o correio, para poder te enviar minhas muitas cartas (sem respostas). Agora descobri uma caixinha de coleta bem em frente ao meu prédio, e como tenho um estoque de selos, sei que as cartas têm chegado até você. Minha conclusão é que não vamos ter uma segunda chance, que você realmente superou a minha ausência, que o amor era unilateral afinal. Não vou conseguir viver com isso. Não vejo razão para tal. Vou partir, mas não quero que você sinta algum tipo de remorso. Alivio-te deste sentimento, e devo dizer que estou ansioso para livrar-me do fardo de viver. A esta altura, provavelmente já não tenho mais emprego e meus (poucos) amigos desistiram de mim. Meu telefone foi cortado há dois dias e a comida acabou também. Restam-me os comprimidos para dormir, e é o que farei. Dormirei com a esperança que venha com o sono o alivio desta carga que me oprime. Siga sua vida e tente pensar em mim nos bons momentos. Seja feliz e de onde estiver, estarei olhando para você com carinho e gratidão.

Adeus, João.


Manchete de Jornal:

Greve de correios atrapalha população.

Manchete de Jornal:

Encontrado corpo de jovem escriturário

Nota de Jornal:

O jovem escriturário da Companhia Mercantil Docas Reunidas João Feliciano Morel foi encontrado morto em seu apartamento no bairro de Botafogo em avançado estado de decomposição. Amigos disseram que o rapaz sofria de alucinações e se referia constantemente a uma namorada imaginária, que nenhum deles jamais conheceu.

Manchete de jornal:

Correios normalizam entregas de correspondências.

Manchete de jornal:

Jovem encontrada morta em circunstâncias misteriosas

Nota de jornal:
A jovem Carolina do Vale Diniz, foi encontrada morta em seu apartamento na cidade de São Paulo, bairro de Perdizes esta manhã. As circunstancias de sua morte ainda estão sendo apuradas, segundo o delegado de plantão Geraldo Petit. Ele diz ter estranhado haver muitas cartas abertas e espalhadas pelo chão do apartamento, em volta do corpo, além de um frasco de pílulas para dormir vazio. A família diz que a jovem era muito reservada e viajava constantemente ao Rio de Janeiro a trabalho.

domingo, 8 de julho de 2012

O HOMEM QUE NÃO SABIA VIVER



Ele certamente era um desastre nas quatro dimensões. Não funcionava mesmo. Até tinha certo charme, com aquele ar distante de intelectual instantâneo, citações pseudo-inteligentes e tal, mas viver....aí já era outra historia! Seus relacionamentos então, péssimos. Começavam bem, não me entendam mal. Flores, bilhetes, poemas, juras de amor eterno... até a próxima terça –feira. Sentia-se mal com tanta frivolidade afetiva. De certa feita foi consultar um psicólogo que o ouviu pacientemente durante 55 minutos — apenas para afirmar ao final da consulta que sentia “incrível inveja” de suas proezas amorosas! Isso o revoltou sobremaneira e ele decidiu fazer greve de amor, eclipsar o sexo. Conseguiu. Durante longas seis semanas sofreu sozinho e escreveu como nunca. Depois, queimou tudo o que havia escrito neste período. Entre viver e escrever escolheria a segunda opção, sem pestanejar. O problema é que escrevia mal. Mal para cacete. Agradava a alguns, mais a algumas, com aquele verniz de “olha-que-incrível-coincidência” em seus poemas, mas era só. Não tinha consistência. Não tinha peso. E assim foi até conhecer Dalila. Com ela sentiu-se Sansão. (péssimo trocadilho do escriba deste). Ela em verdade, nem ligava muito para o que ele escrevia. Lia, sim, por polidez e consideração. Mas emudecia sempre e alegava “nada entender de literatura” para poder opinar. Um dia ela o deixou. Não por outro ou outra. O deixou simplesmente. Ele desesperou-se e tentou escrever algo. Não saía nada. Ficou mudo, suas penas secas de tinta. Inspiração a zero. Decidiu então, por falta de outra coisa a fazer ou saber fazer, escrever suas memórias. As memórias de um sedutor. Foi fiel aos fatos. Extensos. Virou Best-seller, vendeu pacas. Revoltou-se e desta vez, parou mesmo de escrever. Hoje dizem, é pacato sacristão numa cidadezinha do Vale do Paraíba. Muitas mulheres ali, coincidentemente, estão deixando seus maridos!