domingo, 15 de julho de 2012

A CAUSA


 O homem de longos cabelos brancos demonstra especial interesse numa pequena nota de jornal deste outubro de 2003. “Governo cria comissão especial para investigar mortos e desaparecidos no Araguaia”. A idéia veio como um raio, pronta, embalada, de uma só vez! Era isso!
Deparou-se com um centro velho de São Paulo decadente e cheio de ambulantes e homens-placa. Trazia um pequeno papel com o endereço do que procurava e acabou encontrando afinal, um prédio antigo e mal cuidado. Entrou sem que ninguém lhe perguntasse aonde ia, e no pequeno escritório do terceiro andar, o homem de olhar desconfiado o atendeu. Vamos descer meu camarada, falamos na rua. Sem entender, seguiu o outro pelas escadas abaixo, e então para a rua.
“Posso lhe conseguir os documentos que quer, mas claro, tudo tem um preço.” A afirmação seguida de um sorrisinho cínico, enfatizada pelo bigodinho “a la” Cantinflas do personagem à sua frente não ajudou muito a melhorar seu estado de espírito.
“Vou pensar, mas antes quero saber o quanto custa”.
“Farei um desconto especial para você, em nome de sua amizade com o Boró. Cinco mil. Por tudo.”
“Cinco mil está caro!”
“Uma pechincha. Uma pechincha. E o resto do processo é rápido, sempre se conhece alguém que facilite as coisas.”
“Essa parte eu sei. Está bem. O que você precisa?”
“A grana. O resto a gente inventa, cria. Metade a vista e o resto na entrega. Passar bem.”
Afastou-se rapidamente e perdeu-se entre os transeuntes daquele comecinho de noite na movimentada praça no centro de São Paulo. O homem mais velho ficou parado ali, por um tempo, refletindo no que estava prestes a fazer e concluiu que isso não era diferente de muitas coisas que fizera a vida toda. Iria seguir com o plano, seja o que Deus quiser! Precisava arrumar o dinheiro, mas para isso podia contar com Alzirinha.


1968.

Dentro do pequeno apartamento, nos arredores da cidade de São Paulo um grupo de jovens confabula animadamente, ainda que em voz baixa. Planejam uma ação ousada para angariar fundos para sua causa. São inconseqüentes, ousados e inexperientes. Seu líder é Flavio Dalmas, um estudante de Direito do Largo de São Francisco. Sua noiva, Maria Helena Jordão, uma mulher madura na faixa dos 30 anos e muito atraente, estava ao lado, como sempre. Antonio Xavier França é o seu melhor amigo e também está presente. Outros integrantes conversam e entre eles destaca-se um novato, primo órfão de Maria Helena, Bernardo Osório Jordão. Um pouco mais novo que os demais, de estatura mediana, cabelos lisos, usa um topete á moda de Elvis, e aparenta bem menos que os vinte e dois anos que alega ter. No começo Flavio não queria usá-lo, mas foi o próprio Bernardo quem argumentou que com sua aparência de adolescente, poderia infiltrar-se com mais facilidade em certos ambientes. Fazia sentido, afinal.
O plano era simples: seqüestrar um industrial importante, exigir uma alta soma á título de resgate e enviar o dinheiro para os companheiros perdidos nas selvas do Araguaia. Simples na teoria, claro, mas quem iria dizer isso àqueles jovens tão cheios de entusiasmo e animação?
A sorte conspira a favor. Batem à porta, alguém vai atender e volta acompanhado do “japonês”. Esse é um dos mais enigmáticos integrantes do grupo, sempre chega atrasado, e vai embora antes dos demais. Traz consigo uma edição da “Folha da Noite”, recém saído das prensas.
“Tenho aqui o nosso alvo, olhem: um figurão mexicano, executivo de uma multinacional americana de carros, o sujeito é um exibicionista e abriu sua casa para a repórter da seção “Lares de Sonho”.
Todos olham para o jornal e realmente está tudo ali: os sofás caríssimos, os quadros nas paredes, a piscina, as trocas de roupa da cafonérrima esposa, com um vestido diferente em cada foto, os cachorrinhos pequenos, até mesmo o endereço da tal mansão.
Então era isso. Planejamento rápido, ação contundente e sorte de principiante. Eis que em menos de uma semana, do início ao fim, aquele grupo de jovens mal saídos da puberdade conseguem perpetrado uma das mais audaciosas e bem sucedidas operações criminosas até então no país. Não foi preciso usar violência e a grande corporação providenciou o pagamento do resgate rapidamente. Mal acreditavam que a coisa havia sido tão fácil!
Aquela grande e pesada sacola de lona, recheada de dólares, ficou debaixo da cama do apartamento por quase dez dias, até decidirem como enviar o fruto de sua ação para os companheiros no norte do país. Eventualmente, Bernardo foi o escolhido, justamente por sua aparência de menino. Ele que na última hora não pudera participar diretamente da ação de seqüestro, acometido de terríveis cólicas, agora poderia ser útil afinal. Traçou-se um roteiro complicado, que envolvia uma viagem de ônibus até Salvador, com paradas no caminho, e de lá para Belém de navio. Numa segunda feira de manhã, Maria Helena, dirigindo o fusca branco de Flavio, deixou Bernardo na rodoviária com suas malas e aparência de colegial de férias.

2008

O elegante gabinete do Ministério da Justiça, na esplanada dos Ministérios em Brasília, com sua decoração sóbria e amplas janelas, abriga mais uma reunião de rotina. O poderoso assessor do Ministro, homem em seus cinqüenta e poucos anos, bronzeado e muito bem disposto, atende pelo nome de Francisco Pavuna. Militante de importante partido de esquerda ascendeu ao poder graças aos seus dotes de negociador moderado, ainda que firme. Sua diplomacia, sua elegância, seu domínio de vários idiomas fazem dele um ser quase anacrônico numa militância que às vezes extravasa a simplicidade de suas respectivas origens.. Neste momento estão a discutir as polêmicas indenizações dadas aos ex-combatentes da ditadura militar que governou o país nas décadas de sessenta e 70. Dezenas de processos estão dispostos em pilhas numa mesa ao lado, e um funcionário relata a situação de cada pessoa, seu envolvimento, suas prisões, o valor a ser concedido.
Francisco Pavuna é sempre um dos mais comedidos e toma notas cuidadosamente em sua agenda de capa de couro preta. Alguns nomes lhe são familiares, de anos passados, de outra vida, parece. A voz do relator começa a ficar monótona e é sempre a mesma seqüência: “Processo número 214/2002 de Agnaldo Beirão contra a União. Agnaldo... e continua. Processo número 215/2002 de Gerson Rodrigues França contra a União.”
Francisco olha para fora da imensa janela, e pensa em sua casa à beira do lago. Está ansioso pelo final de semana, onde poderá finalmente ter um descanso. Não pode se queixar: tem status, um bom emprego, dinheiro e o respeito das pessoas.
“Processo número 216/2002 família de Bernardo Osório Jordão contra a União.” Francisco deu um pulo na cadeira! Aquilo não era possível, aquele nome não existia mais! Tentou parecer natural e pediu para que o relator passasse a pasta a ele após a leitura. Segurou-a com força, com as mãos suando e pediu licença, dirigindo-se a seu gabinete no mesmo andar. Um fluxo de memórias invadiu sua mente trazendo uma sensação muito desconfortável. Começou a suar frio, temendo ter um ataque cardíaco ali mesmo. Procurou controlar-se, tinha que descobrir quem estava por trás daquele embuste. Quem era a família? Abriu a pasta com o processo e constava apenas um nome de mulher, Cristina Jordão, 41 anos, filha. Como era possível? Bernardo não tinha filha alguma, alguém estava tentando aplicar um golpe. Precisava localizar esta Cristina. Não havia número de telefone, mas sim um endereço em Bertioga, litoral norte de São Paulo. Cancelou seus compromissos para o resto da semana e tomou o primeiro vôo para a capital paulista. Chegando ao Aeroporto de Congonhas, dirigiu-se ao guichê de uma locadora de carros e pediu um modelo popular, não queria chamar a atenção. Tomou um café e adquiriu um mapa rodoviário na banca de revistas do Aeroporto, enquanto o carro era preparado.
Entrou no pequeno Gol branco e dirigiu-se para a Avenida Bandeirantes, e dali para a rodovia Imigrantes. Fazia anos que não vinha para aqueles lados, pelo menos de carro, de helicóptero tudo era muito mais fácil.
Bertioga é uma cidade pequena, em vias de desenvolvimento á beira mar. O endereço dizia: Avenida Anchieta. Não foi difícil localizar a antiga estrada que corta a cidadezinha paralelamente ao mar. Sua ansiedade aumentava muito. A pequena casa era no fundo de um terreno grande. Parou o carro, observou se não havia cachorros e abriu o portão. Havia um carro antigo parado na frente e nenhum sinal de vida. Avançou alguns passos em direção a casa e bateu palmas. Ouviu ruídos do lado de dentro e mal pode acreditar quando viu quem o atendeu:
“Você?” exclamou atônito.
“Sim, Bernardo. Pensou que eu havia morrido também?”
Francisco/Bernardo encarou Flavio, seu velho companheiro de guerrilha. Flavio disse:
“Fugir com o nosso dinheiro foi uma péssima idéia. E dizem que entregou os companheiros para os militares também.”
Bernardo mal conseguia respirar. Retrucou: “Eu admito ter fugido com o dinheiro. Mas havia pouco mais de dez por cento naquela mala. Nunca entreguei ninguém, juro. Tive uma oportunidade de viajar para a Europa e fui, mas jamais dedurei ninguém. Você precisa acreditar nisso.”
Flavio disse: “Não fique parado aí fora, entre, vamos.”
Bernardo hesitou um pouco, temia pela sua vida, mas não viu alternativa. A casa era modesta, mas espaçosa e confortável.
“Como posso conceder uma pensão á uma filha que jamais tive?” Como posso anistiar a mim mesmo? Que tipo de brincadeira é essa?”
“Brincadeira nenhuma, Bernardo. Apesar das plásticas que fez, sua vaidade o levou a perder-se. Reconheci-o em uma das entrevistas que deu à televisão. Quem é Francisco Pavuna afinal?”
“É alguém que conheci no exterior e que morreu muito jovem. Não tinha família, poucos amigos, nada que chamasse a atenção. Retornei ao Brasil antes da anistia e precisava de uma identidade segura. Suponho que agora você vá me entregar ou querer algo pelo meu segredo?”
“Você esta enganado, Bernardo. Você já me deu muito mais do que imagina. E vai conceder a pensão á Cristina, que de qualquer forma virá parar em meus bolsos. Seu segredo e sua vidinha de jatos e viagens estão seguros.”
“E quanto a você, Flavio?” Bernardo recuperou um pouco de sua frieza. “O que fez durante esses anos todos?”
“Bernardo, vive-se muito bem na Suécia com algumas centenas de milhares de dólares. Mas infelizmente o dinheiro acaba, paga-se impostos, e as mulheres européias são caras.”
Bernardo olhou bem o ex-amigo. Não sabia se sentia nojo ou pena daquele homem parado a sua frente, tão diferente do jovem idealista que outrora conhecera. Entregara os próprios companheiros ao ser preso. Roubara o dinheiro e traíra a causa.
“E a causa, Flavio?”
“A causa somos nós, Bernardo. Sempre somos a causa. Os anos passam, o mundo muda, e todos querem cuidar de si mesmos e dos seus. Você precisou de um novo nome, um novo rosto e uma nova identidade. Qual era a sua causa afinal? Eu fui preso, torturado e admito, acabei falando mais que devia. Estávamos todos condenados, você sabe disso. Mas havia o dinheiro e ele passou a ser meu por direito, pelas cicatrizes que vou carregar para sempre.”
Bernardo sentou-se. Preferia ser Francisco, afinal. Daria a pensão a uma filha inexistente para manter o segredo fechado. Uma causa pode ter preços e conseqüências. E alguém, em algum lugar tem que pagar por eles. Só não estava seguro se tudo aquilo fazia algum sentido. Sentiu-se oco e desprovido de propósito. Levantou-se e disse a Flavio:
“Fique tranqüilo. Sua causa não vai te abandonar agora. Vou providenciar para que tudo corra a contento.”
Virou-se e partiu. Iria anistiar um morto que era ele mesmo. Um ser que talvez jamais tivesse existido de verdade. Sentiu-se um pouco morto também. Talvez estivesse mesmo. Sentiu saudades do jovem idealista que fora há muitos anos. O mar continuava a empurrar as ondas contra a areia e estas teimavam em retornar para o fundo. O fluxo das marés explica muito das vontades dos homens.

quinta-feira, 12 de julho de 2012

O BILHETE


Engoliu em seco, respirou fundo e procurou estancar ali mesmo a fluxo de memórias. Essa não era a hora para isso. Olhou para os dois lados antes de atravessar a grande avenida em frente ao hospital, tarefa difícil mesmo àquela hora, devido ao tráfego intenso do local. Chovia um pouco e isso combinava com o seu estado de espírito. Preparou-se mentalmente para o que iria encontrar, mas seus pensamentos estavam confusos. Um bilhete. Um nome do passado lhe trouxera até ali. Um passado do qual fizera absoluta questão de desligar-se, mas era em vão. Um fio invisível parecia puxá-lo de volta a um tempo e a uma vida que já não lhe pertencia, e por mais que resistisse, sentia-se inexoravelmente sugado a coisas e sensações que tentava olvidar.
A recepção cheia e o som de vozes em profusão, pessoas impacientes a exigir atenção e exclusividade para seus respectivos problemas lhe deu uma leve sensação de náusea. Era sempre assim quando se deparava com grandes grupos de pessoas. Preferia sempre estar sozinho em seu mundinho particular. Houve uma vez em que isso era muito diferente, mas isso foi... naquela vida anterior, a mesma que procurava deixar para trás, mas cujos tentáculos invisíveis o puxavam sempre como a dizer “isso é parte de você, sua identidade e sua história, e por mais que tente não vai conseguir livrar-se tão facilmente”. Interrompeu as conjecturas no momento em que a atendente lhe dirigiu palavra: “posso ajudá-lo, senhor?”
“Sim, procuro por um amigo. Ele deve estar internado aqui, seu nome é Walter Bandini.”
“Deixe-me ver, senhor. Um momento. Walter Bandini, sim, está na ala de recuperação de cirurgias. Sexto andar senhor, vou lhe dar um crachá de visitante. Seu nome, por favor.”
“Antonio Fontana.”
O olhar da recepcionista e das pessoas mais próximas foi de espanto. Um conjunto de pescoços virou de maneira sincronizada em direção a ele, ao ouvirem o nome. O chapéu, o casaco com a gola levantada, o par de óculos grandes, deixaram de ter o efeito de disfarçar o rosto do ator outrora famoso. Era sempre assim quando reconhecido. As pessoas o fitavam com um misto de reconhecimento e tentativa de localização de onde vinha esse sentimento. Do passado, das novelas de televisão, dos poucos filmes que protagonizara. De outra vida. De uma existência que tentava apagar e somente o bilhete mencionando a promessa o fizera mudar esta postura.
Com o crachá em mãos procurou pelos elevadores sentindo em sua nuca uma bateria de olhares curiosos. Jamais se acostumara com a abordagem de estranhos, a idéia de que conheciam mais a seu respeito e sua vida que ele próprio. Com os anos isso foi se espaçando, e já não lhe causava aborrecimentos. Às vezes, até gostava disso, lhe dava uma sensação que nem tudo em sua vida havia sido inútil, vazio.
Devia a visita a Walter, mas estava muito cansado mentalmente para liberar o fluxo de recordações. Queria fazer isso de maneira rápida e indolor. Umas poucas palavras, cumprir com sua obrigação e ir embora. Talvez cortar definitivamente o laço com aquele passado que fora, para o bem e para o mal a base e o alicerce de sua vida, por mais que tentasse evitar.
O corredor era grande, largo e bem iluminado. Muitas pessoas circulavam por ali e conseguiu passar despercebido. Quarto 608. Hesitou um pouco ao chegar à porta, mas esticou o braço e virou a maçaneta, sem bater. Walter estava sozinho na cama enorme, com uma espécie de esparadrapo no rosto e um tubo de soro espetado no braço esquerdo. Dormitava. Antonio aproximou-se com cuidado para não fazer barulho e fitou o rosto do amigo. As marcas dos anos estavam todas ali, expostas e sem disfarces. E que rosto! As rugas e os cabelos grisalhos lhe emprestavam uma aparência ainda mais impressionante que na juventude, quando era impossível não ser notado e admirado por sua beleza e distinção.
Suas pálpebras moviam-se compassadamente e parecia estar sonhando pela expressão embevecida de sua face. Antonio procurou uma cadeira e sentou-se ao do amigo, em silêncio. Entre eles sempre fora assim, palavras eram supérfluas, o entendimento fluía sem grandes esforços. Como puderam se afastar tanto? Como deixaram isso acontecer? Houve um tempo em que eram mais que amigos, irmãos. Dividiam sonhos, esperanças, planos para um futuro que brilhou apenas parcialmente, enfim. Mas a que preço? A descaracterização da personalidade, a negação de valores, a busca incessante por reconhecimento, por fama, pela glória. Eram tão amigos e tão diferentes. Entendia isso agora, de maneira tão clara!
Walter sempre fora o mais carismático, o mais belo, o líder da turma de amigos da pequena cidade em que viviam quando jovens. Todos eram sonhadores, tinham planos e projetos grandiosos. Apenas Antonio finalmente saiu em busca daqueles ideais que tinham em comum, sendo bem sucedido em boa parte deles. Os outros se casaram, engordaram, se acomodaram e de certa maneira, ficaram ressentidos com ele por ter obtido sucesso. Alguns sonhos são destinados a ser exatamente isso: sonhos. Quando colocados em prática, tornados realidade perdem a magia e a graça. Antonio transformara o sonho de fama e glória em uma realidade para si, o que acabou gerando um sentimento misto de admiração e inveja nos outros membros do grupo.
Não Walter. Este sempre incentivara o amigo e quando convidado a se juntar a este no Rio de Janeiro, sorria e dizia: “Isto não é para mim. Você e eu somos diferentes e esse é o seu mundo.” “Meu mundo!” pensava agora Antonio, imerso em suas memórias. Quantas vezes ele tivera a prova de que aquele mundo era tudo, menos seu? As viagens, as mulheres, as novelas de televisão, a fama nacional. Tudo aquilo parecia tão distante e artificial. Os casamentos, os filhos com quem mal tinha contato. A imagem pública.
Percebeu agora que pouco sabia da vida de seu amigo, tão preocupado estivera em tentar resolver a sua, sempre debaixo de holofotes e com pouca privacidade. Walter estava em sono profundo, mas sua expressão era boa. Uma enfermeira entrou pela porta, cumprimentou-o profissionalmente e tirou a pressão do paciente. Anotou algo em uma prancheta presa ao pé da cama e retirou-se em silêncio. Era jovem e com alivio, Antonio percebeu não ter sido reconhecido. Há muito preferia assim, passar incógnito pelas pessoas.
Imerso em suas recordações quase não percebeu a aproximação de alguém. Ouviu passos suaves quando a porta já havia sido fechada por dentro. Levantou seu rosto e tomou um susto: Heloísa, a sua Heloisa estava ali à sua frente! O tempo havia parado para ela, continuava a ter seus vinte e poucos anos. Não era possível! A jovem sorriu delicadamente, do mesmo jeito que Heloisa e disse: “ Papai esperava que viesse. Obrigada por isso. Ele vai ficar muito feliz!”
Ainda aturdido com aquela visão, Antonio balbuciou algumas palavras desconexas. Nesse momento, Walter acordou e disse: “Seu velho malandro, vai ficar aí jogando charme para minha filha também? Não respeita as filhas dos amigos?” Antonio, visivelmente emocionado, virou-se e fitou o amigo. Agora entendia tudo. Heloisa fora a razão da escolha de Walter. Ambos a amavam. Ambos eram rivais e os dois podiam ter sido os escolhidos. Perguntas há muito sem respostas começavam a ser respondidas. E nesses anos todos ele apenas pensara em si, na carreira, na fama. Pensava ter vivido o sonho e percebia agora que Walter o vivera de forma mais intensa e verdadeira.
Sentou-se ao lado da cama do amigo. Tanto para conversar, difícil começar! Os assuntos fluíam e Cibele, a linda clone de Heloisa sentou-se perto da janela, embevecida com a visão do pai animado, falante, como há muito não via.
Após alguns minutos, Walter chamou Cibele e lhe pediu para sair um pouco. Esta sorriu e disse que sim. Walter puxou o braço de seu amigo e pediu-lhe atenção. Antonio notou  que conforme falava, Walter ficava ofegante, parecia cansado e lhe disse para descansar um pouco. Walter retrucou: “ Não quero descansar, vou ter muito tempo para isso. Estou morrendo, você sabe.”
Antonio disse: “ Não seja bobo. Você está em um dos melhores hospitais do pais, com todos os recursos. Sempre foi dramático, pelo jeito não mudou.”
“Não. Eu tenho um câncer incurável e a operação apenas mitigou algo que não tem jeito. Não sei se estou preparado para morrer, nunca sabemos, mas depois da morte da minha Helô, acho que a idéia de juntar-me a ela, torna a morte mais palatável.”
Antonio olhou o amigo. A “sua” Helô. Era estranho ouvir isso, porque houvera um tempo em que Helô fora dele, Antonio. E ele fora dela, total e irracionalmente. Até o dia da partida para o Rio de Janeiro, acreditava que ela o seguiria, mas não aconteceu assim.
“Antonio, preciso que saiba de algo. Não posso morrer com esse segredo e apesar do tempo, sei que somos amigos.”
“Claro, Walter. Percebo agora que foi um erro ficar tão afastado de vocês e confesso, não sabia que Heloísa e você...”
Walter não o deixou concluir a frase: “Sim, nos casamos. E foi pouco depois de sua partida para o Rio. Eu não podia deixar a Helô grávida e sozinha, podia?”
Aquilo foi como um raio para Antonio! Agora compreendia tudo. Walter iria segui-lo para o Rio, haviam combinado de morar juntos, batalhar pela carreira unidos, como sempre. Após alguns meses uma carta curta, dizendo apenas que não o esperasse mais. Aquela carta o havia magoado e seguiu em frente, sempre planejando voltar á pequena cidade e saber do amigo porque desistira dos sonhos. Isso nunca acontecera afinal, o tempo era inclemente e teimava em passar muito rápido. Entendeu num átimo de segundo que Cibele era sua filha e que Walter se casara com Helô para protegê-la. Aquele gesto, o altruísmo contido nele foi maior que tudo o que Walter fizera em sua própria vida..
“Eu nunca contei a Cibele a verdade. Sinto-me o pai dela, a Helô quis assim, apesar de nunca ter deixado de te amar.”
“Ela nunca vai saber nada de mim. Você é o pai dela. Estarei por perto, caso ela precise de algo, mas o pai é você Walter.”
“Agora vá. Eu preciso descansar um pouco. Se puder, volte para me ver amanhã. Temos muito que conversar.”
“Vou sim, e certamente vou estar aqui amanhã. Obrigado pelo bilhete. Foi a melhor coisa que li em muitos anos, apesar das circunstâncias.”
Walter sorriu. “Você se lembra do que combinamos. Amigos para sempre. Bastava um chamar o nome do outro, lembra? Fiquei com medo que houvesse se esquecido, mas agora estou muito feliz que tenha vindo. Eu teria feito o mesmo por você.”
“Você fez muito, muito mais por mim. Volto amanhã, meu amigo.” Dizendo isso, Antonio despediu-se. Ao sair do quarto, avistou Cibele sentada num sofá perto da ampla janela do corredor. Lá fora a escuridão era quebrada pelas luzes da cidade grande. Aproximou-se da moça, que ainda o perturbava por sua incrível semelhança com a mãe e disse: “Ele precisa descansar um pouco. Eu volto amanhã querida. Somos amigos, você sabe...”
Ela sorriu. Sem palavras. Exatamente como a mãe. A promessa de um novo recomeço se desenhou naquele rosto bonito e sincero. Algo que buscou sempre, a verdade, estava ali, bem a sua frente. Sorriu de volta e foi para casa, apertando o bilhete no bolso do casaco.

terça-feira, 10 de julho de 2012

AMORES VULNERÁVEIS



Epístola Primeira

Amor,

Sinto-me mal, mas não havia outra maneira de lhe dizer isso. Não posso mais. Estou arrasado e imagino que estejas também. Mas alguém tem que ceder e eu sou esse alguém. Saio antes que os danos sejam irreversíveis. Melhor assim? Não sei. Não tenho uma bola de cristal, mas imagino que a solução seja a mais correta.  Aliás, dane-se o correto, o certinho, as coisas justas. Você me ensinou a ser assim: “A transgredir, por mais que me custe”. “Sair dos trilhos”, você sempre prega.
Hoje estou mais leve. Imensamente aliviado. Dói ainda e vai doer por um bom tempo, suspeito. Mas a compensação em ter a consciência em paz me diz que a médio prazo, estarei bem. Estaremos bem. Você e eu, cada qual em seu caminho, trilhando seu destino, buscando sua cara metade. Quase encontramos, estávamos prestes a formar o encaixe perfeito, tipo um cubo mágico, quando algo se rompeu. Rompeu-se, entende? Não há cola no mundo que possa remendar essa fissura.
Não vou mais tomar seu tempo. Espero que me perdoe e me esqueça. Eu já perdoei e saberei esquecer. Time after time, diz aquela velha canção. O tempo vai curar tudo. E vai lavar as mágoas. Sei que estou parecendo uma colagem de frases retiradas de pára-choques de caminhão, mas não consigo ser original hoje.
Beijos,

João.

Epístola Segunda

Amor,

Resolvi voltar atrás e te pedir perdão. Que reconsidere minha carta anterior e entenda que quando a escrevi estava em profundo estado de depressão. Não havia superado a perda e tampouco havia aprendido a perdoar. Acredite, agora eu sei. Mudei, sou um novo homem e espero que me dê uma nova chance. Vamos fazer o seguinte: passamos uma borracha no passado e começamos do zero. Podemos até fingir que não nos conhecemos, você chega ao Jimmi’s Bar com seu cabelo molhado e seu jeitinho meio atrapalhado (e adorável), e derruba uma taça de vinho da casa em minha calça nova (de novo). Eu compro outra. Vale a pena ver sua carinha linda e confusa e sua expressão de querer compensar algo. Adoro esse seu jeitinho compungido de fazer as coisas. Vai avançando, atropelando, mas ao primeiro obstáculo, recua, pede desculpas, mostra sua verdadeira personalidade. Doce e intensa. Amor, não consigo te chamar de outra coisa, volte.

Seu, João.

Epístola Terceira

Amor,

Esperei dois dias inteiros e nada. Ou como dizia Erasmo na música “já fumei um cigarro e meio e Narinha não veio”. Minha vida parou. Sem você, ela não tem mais sentido. Preciso ouvir tua voz, nem que seja para me atingir, ofender. Como da última vez que brigamos e seus gritos acordaram os vizinhos. Pior foi explicar ao policial com quem eu havia estudado no colegial que não íamos nos matar, no meio daquela cena dantesca de móveis quebrados e objetos espalhados pela sala do apartamento.
Vou ser sincero: não consigo viver sem você. Até o ar que respiro,  precisa de você para ser efetivo e me manter vivo. Repassei mentalmente, como quem revê um velho filme favorito, toda a nossa história. Valeu muito a pena. Vale muito você me perdoar. Desta vez eu vou mudar, prometo. Tentei ligar, mas ninguém atende. Confesso: liguei na casa de sua mãe, mas pela frieza que senti dela, acho que ela não te deu o recado.
Estou aqui, seu e seu.

Muito seu, João.

Epístola Quarta

Amor,

Não consigo mais respirar. Meu peito arde e me falta ar. Não vou trabalhar há três ou quatro dias. Acho que emagreci um bocado, perdi o apetite. Não faço a barba há um tempo. Acho que ficou legal, lembra que você sempre me pediu para deixar a barba, como o George Clooney naquele filme? E que eu, por ciúmes, falei que ele era gay, que o filme era uma merda (e é mesmo, mas foi despeito)? Anjo: para de me torturar assim. Vamos fazer um trato: saímos para um café. Só preciso que você me dê meia hora, me ouça. Toda questão tem dois ou mais lados. Vou te mostrar que nossa historia só tem um desenlace: nossa felicidade juntos.
Sabe que sinto falta de tudo? De nossas brigas. Da sua mania de me censurar sem palavras. Do seu olhar severo, onde arqueia as sobrancelhas e os olhos ficam mais escuros e parecem duas jabuticabas. Sinto falta de você demorar horas no banho e eu reclamar do absurdo da conta de luz.


Seu, seu e só seu, João.

Epístola Quinta

Amor,

Entendi agora. Você quer me torturar cruelmente. Matar-me de inanição. Pois bem, conseguiu! Pare agora. Destruiu meu ego, assim como um sargento sádico faz com uma tropa de recrutas inseguros e imberbes. Jogo-me a teus pés. Rendo-me incondicionalmente. Defina seus termos que minhas tropas capitulam incontinenti! Já entendi o teor de seu silêncio. Ele é a mais atroz demonstração de seu desprezo. Mesmo assim, rastejo até você. Aceite minha rendição sem honra e dite as condições que quiser. Estou magro, barbudo, insociável. Você é minha religião, minha razão de viver, minha obsessão, quiçá a razão de morrer. Responda, por favor.

Inteiramente seu, João.

Epístola Sexta

Amor,


Não mais voltarei a te incomodar com minhas lamúrias. Tomei uma decisão e não volto atrás. Esta é uma carta de despedida. Não saio de casa há dias, não leio os jornais, não ligo a tevê, e nem escuto o rádio. Antes caminhava até o correio, para poder te enviar minhas muitas cartas (sem respostas). Agora descobri uma caixinha de coleta bem em frente ao meu prédio, e como tenho um estoque de selos, sei que as cartas têm chegado até você. Minha conclusão é que não vamos ter uma segunda chance, que você realmente superou a minha ausência, que o amor era unilateral afinal. Não vou conseguir viver com isso. Não vejo razão para tal. Vou partir, mas não quero que você sinta algum tipo de remorso. Alivio-te deste sentimento, e devo dizer que estou ansioso para livrar-me do fardo de viver. A esta altura, provavelmente já não tenho mais emprego e meus (poucos) amigos desistiram de mim. Meu telefone foi cortado há dois dias e a comida acabou também. Restam-me os comprimidos para dormir, e é o que farei. Dormirei com a esperança que venha com o sono o alivio desta carga que me oprime. Siga sua vida e tente pensar em mim nos bons momentos. Seja feliz e de onde estiver, estarei olhando para você com carinho e gratidão.

Adeus, João.


Manchete de Jornal:

Greve de correios atrapalha população.

Manchete de Jornal:

Encontrado corpo de jovem escriturário

Nota de Jornal:

O jovem escriturário da Companhia Mercantil Docas Reunidas João Feliciano Morel foi encontrado morto em seu apartamento no bairro de Botafogo em avançado estado de decomposição. Amigos disseram que o rapaz sofria de alucinações e se referia constantemente a uma namorada imaginária, que nenhum deles jamais conheceu.

Manchete de jornal:

Correios normalizam entregas de correspondências.

Manchete de jornal:

Jovem encontrada morta em circunstâncias misteriosas

Nota de jornal:
A jovem Carolina do Vale Diniz, foi encontrada morta em seu apartamento na cidade de São Paulo, bairro de Perdizes esta manhã. As circunstancias de sua morte ainda estão sendo apuradas, segundo o delegado de plantão Geraldo Petit. Ele diz ter estranhado haver muitas cartas abertas e espalhadas pelo chão do apartamento, em volta do corpo, além de um frasco de pílulas para dormir vazio. A família diz que a jovem era muito reservada e viajava constantemente ao Rio de Janeiro a trabalho.

domingo, 8 de julho de 2012

O HOMEM QUE NÃO SABIA VIVER



Ele certamente era um desastre nas quatro dimensões. Não funcionava mesmo. Até tinha certo charme, com aquele ar distante de intelectual instantâneo, citações pseudo-inteligentes e tal, mas viver....aí já era outra historia! Seus relacionamentos então, péssimos. Começavam bem, não me entendam mal. Flores, bilhetes, poemas, juras de amor eterno... até a próxima terça –feira. Sentia-se mal com tanta frivolidade afetiva. De certa feita foi consultar um psicólogo que o ouviu pacientemente durante 55 minutos — apenas para afirmar ao final da consulta que sentia “incrível inveja” de suas proezas amorosas! Isso o revoltou sobremaneira e ele decidiu fazer greve de amor, eclipsar o sexo. Conseguiu. Durante longas seis semanas sofreu sozinho e escreveu como nunca. Depois, queimou tudo o que havia escrito neste período. Entre viver e escrever escolheria a segunda opção, sem pestanejar. O problema é que escrevia mal. Mal para cacete. Agradava a alguns, mais a algumas, com aquele verniz de “olha-que-incrível-coincidência” em seus poemas, mas era só. Não tinha consistência. Não tinha peso. E assim foi até conhecer Dalila. Com ela sentiu-se Sansão. (péssimo trocadilho do escriba deste). Ela em verdade, nem ligava muito para o que ele escrevia. Lia, sim, por polidez e consideração. Mas emudecia sempre e alegava “nada entender de literatura” para poder opinar. Um dia ela o deixou. Não por outro ou outra. O deixou simplesmente. Ele desesperou-se e tentou escrever algo. Não saía nada. Ficou mudo, suas penas secas de tinta. Inspiração a zero. Decidiu então, por falta de outra coisa a fazer ou saber fazer, escrever suas memórias. As memórias de um sedutor. Foi fiel aos fatos. Extensos. Virou Best-seller, vendeu pacas. Revoltou-se e desta vez, parou mesmo de escrever. Hoje dizem, é pacato sacristão numa cidadezinha do Vale do Paraíba. Muitas mulheres ali, coincidentemente, estão deixando seus maridos!

quinta-feira, 5 de julho de 2012

SINISTRO



Mãe,

Sei que o que vou escrever a seguir é um tanto incomum, afinal nunca acreditei em médiuns ou espíritos de outro mundo. Não se assuste eu lhe peço. Suplico que leia esta até o final, a despeito de sua fé católica, para então poder julgar e cumprir o pedido que lhe farei no final.
Ao saber que minha transferência para a Inglaterra havia finalmente sido aprovada, fiquei radiante, como a senhora há de se recordar. Afinal de contas, fazia anos que eu lutava por esta promoção e viver no país dos anglo-saxões foi um sonho que acalentei  desde pequeno. Ávido leitor, devorei centenas de Agathas Christies, Sherlock Holmes, A. J. Cronins e outros mais.  Encantavam-me as narrativas a respeito do interior da Inglaterra, as detalhadas descrições de seu countryside, os costumes e as tradições, a inclemência do inverno.
Quando o avião aproximou-se do Aeroporto de Gatwick, já em sua perna final de pouso, rompendo as barreiras das nuvens, pude ver a beleza da simetria das pequenas casas e seus impecáveis jardins abaixo. Abril é o começo da primavera e os campos sorriem pelo alívio de terminar o longo inverno. Nem mesmo o ruído das enormes turbinas do avião foi suficiente para distrair minha atenção e entrei em devaneio, com o olhar perdido na imensidão verde, e os muitos matizes de cores resultantes do entardecer britânico.
Adaptei-me rapidamente. Estava em casa, como, aliás, jamais estivera antes. Londres fez-me um bem enorme, mamãe, precisava ter visto o seu “menino” desenvolver-se, desabrochar, fazer amigos rapidamente. O respeito dos outros se traduz em podermos ficar sozinhos quando queremos e precisamos, e obtermos companhia quando achamos necessário. A empresa estava em fase de franco crescimento e dentro dela, minha ascensão foi meteórica, Nada a reclamar. Jamais voltei a sentir aquelas dores de cabeça que tanto me debilitavam, nem tampouco a coluna voltou a incomodar-me. Depois fui transferido para Norwich em Norfolk, ao norte.
Aos poucos, fui me esquecendo do passado, de minha vida no Brasil, família amigos tudo. Sei que você se queixou muito de minha indiferença, a demora em responder suas cartas, o “esquecimento” das datas importantes. Peço perdão, mas não foi por acaso: queria mesmo varrer de minha memória muitas coisas que me aconteceram aí, e que você, mamãe, jamais soube.
Em Norwich comecei um capitulo novo de minha vida, como se uma segunda chance me fosse dada pelo destino. Em um livro com mau começo rasgam-se os primeiros capítulos e corrige-se a estória, endireitando enredo, personagens, tudo. Sinto muito se a fiz sofrer em demasia. Às vezes, pensava que ao calar-me, emitia sinais de que estava bem. Tolice minha, mamãe, sua angústia muda era tão poderosa que podia atingir-me do outro lado do Atlântico. Bastava-me deitar a cabeça no travesseiro, e demorar um tantinho a mais para dormir, que eu podia sentir tuas vibrações de mãe, nervosa, aflita, sofredora. Por isso comecei com os soníferos. Para deitar-me e não ter aquele hiato de tempo em que se pode repassar o dia a limpo. Demorava-me o mais possível para deitar, para que quando o fizesse, o sono viesse de forma fulminante, instantânea.
Mas mãe, tudo foi em vão! Algo estranho começou a acontecer e eu passei a me dividir em dois: quando acordado, era um homem feliz e produtivo, cheio de energia, amigos e vida profissional e social intensas. Bastava ceder, após muita luta, aos chamados poderosos de Orfeu, para que o inferno começasse: viajava de volta no tempo, no espaço e preso por grilhões de medo e culpa, tentando gritar, mas tendo a garganta muda, sofrendo incríveis pesadelos delirantes.

Aumentei as doses diárias de remédios. A vida produtiva foi definhando, procurei médicos, mas estes foram incapazes de diagnosticar com precisão qual era o meu problema. Os amigos passaram a me evitar, tornei-me irritadiço e agressivo e após uma tola discussão no trabalho, fui despedido.
Resolvi finalmente enfrentar de vez o demônio que me consumia internamente. Armei-me de toda a coragem possível, não sem antes visitar uma igreja das tuas, mamãe, onde pedi proteção a Ele, em seu nome, claro, pois o meu está com poucos créditos nos lugares que conta. Sei que não se importará com isso, afinal em partes, eu ainda era o seu menino.
Voltei à minha casa. Fechei todas as janelas e decidi não tomar os remédios que me mantinham acordado por dias a fio. Tomei um bom banho quente, e nu, deitei-me no chão, no meio da sala de meu apartamento. Tive a preocupação de remover todos os objetos cortantes ou contundentes, para não me machucar de forma involuntária. De costas contra o carpete frio, olhando o teto, demorei horas a adormecer. Filmes intermináveis de minha efêmera existência foram projetados em frente a meus olhos titubeantes. Vi-me bebê em seu colo e vislumbrei brevemente aquele que chamei de papai. Antes que nos deixasse e nunca mais tocássemos em seu nome. Meu crescimento e infância foram normais, com as inseguranças e os medos comunsde crianças e adolescentes. Em toda a trajetória, um ponto em comum era a sensação de não - pertencer àqueles lugares. O sentimento de estrangeiro em minha própria vida, que sempre me acompanhou, era muito forte.
Mamãe, nesse momento, espiritual e fisicamente exausto, cedi. Minhas pálpebras ficaram muito pesadas, insuportáveis, e se fecharam. A consciência se esvaiu rapidamente e penetrei no labirinto do outro. Imediatamente senti um grande frio, não de fora, mas por dentro, intenso, congelando-me a espinha e causando um arrepio doloroso. A consciência ainda era pouco nítida, mas a familiaridade com o universo do outro era total. De repente me senti mais à vontade ali, do que antes, desperto. Meu corpo estirado no chão duro do apartamento, que o carpete de marca vagabunda não conseguia amortecer, foi se distanciando. Ou melhor, eu fui me distanciando daquele corpo, ora tão familiar, ora tão estranho. O espírito vagou livre, alto, fugindo célere daquela prisão de carne. Fui me elevando e pude ver o teto do edifício, depois o meu quarteirão todo, o bairro e as nuvens empanaram um pouco a visão que teria tido de toda a Inglaterra noturna, apesar de que suas luzes brilhando em profusão faziam uma imagem desfocada, conforme a distancia aumentava. Aos poucos percebi que o país estava muito abaixo, a própria Europa, o Oceano, e não pude, então, deixar de virar-me um pouco para a esquerda em busca do Brasil. Este, mamãe, foi o meu maior erro. Teria conseguido me afastar para sempre, com certeza, se não tivesse olhado. Mas olhei e agora uma força incrível me sugava novamente para baixo, velozmente, com voracidade selvagem.
Pude ver as matas da Amazônia, as luzes das principais cidades do nordeste, a caatinga, o norte, agora centro de Minas Gerais, o rio Grande e estou velozmente me aproximando da fazenda de vovô em Campinas. Mas espere: esse é outro tempo, as coisas são diferentes, onde estão os carros, os edifícios? Tudo o que posso ver são fazendas, estradas de chão batido, charretes, carros de bois e pessoas vestidas de maneira estranha.
A velocidade diminui bastante e estou me aproximando de um telhado novo, de um edifico grande para os padrões da vila em que vou aterrissar. Passo pelo teto, e vejo um precário quarto de hospital. Algumas pessoas em volta de um leito e uma mulher com muita dor, prestes a dar a luz. Mamãe acho que vou reencarnar naquela criança, estranhamente no passado do tempo em que vivemos, e quero apenas que acredite que te amei muito, apesar de que agora, de onde estou e do que sou, não posso dizer pessoalmente. Ah, e perdoe as batidas na parede, ao lado de sua cama, as luzes, as vozes: eu tentei fazer contato sim, mas fui incapaz. As rezas, o exorcismo, os diversos bruxos das seitas muitas que foram benzer tua casa me afastaram de ti, antes que eu pudesse renascer em outro corpo, outro tempo. Aceite esta carta como uma despedida, mamãe, e perdoe-me por ter sido tão covarde.

P.S. – O afogamento daquele que chamamos papai, lembra? Soubemos por cima, boatos apenas. Eu o empurrei daquela ponte onde ele costumava pescar, quando tinha doze anos, e seu corpo foi levado pela correnteza do rio, mastigado pelos peixes e muito deformado, encontrado quilômetros adiante. Está enterrado como indigente no cemitério de P....caso tenha interesse.

P.S2- Mamãe, não pude reencarnar naquela doce criança do passado. Algo deu errado e as forças me puxaram de volta ao limbo. Estou agora, dando expediente, de volta à Inglaterra, em um antigo castelo mal-assombrado, ao norte. Alguém tem que entreter os turistas, afinal!

P.S 3- Reze por mim. A vida de fantasma não é fácil, e já não agüento mais os flashes dos turistas estourando em meus olhos cansados. Reze mamãe

quarta-feira, 4 de julho de 2012

EM SEU LUGAR


O local escolhido para o velório era caro e sofisticado, certamente foi criado bem depois que me afastei deste lugar. Cheguei quieto e pretendia permanecer invisível. Mas sabia que as velhas tias, os parentes todos, os vizinhos iriam vir falar comigo. Era até natural, sou uma espécie de filho pródigo da pequena cidade, aquele que foi embora, viu e venceu!
A noticia ainda ecoava doloridamente na minha cabeça: “seu pai está morto!”
Aquele pai imperfeito com que a vida e minha mãe me brindaram. Aquele pai que havia significado tanto e no final....sido tão pouco. Tão pouco pai, tão pouco presente, tão pouco gente.
Agora eu podia ver, entre os abraços e as palavras confusas de conforto que a cabeça dele, mesmo deitada, continuava imponente, dentro de seu caixão. Tentei me aproximar, estava difícil, todos querendo me ver, me tocar, falar comigo. Era uma grande confusão e eu parecia estar em transe, talvez armado com um sorriso vazio e disparando palavras ao acaso. Minha mãe, encolhida a um canto, tipicamente acuada, demorou em vir me beijar. Logo quem deveria ter sido a primeira; mas não importa; eu estava ali porque meu pai estava morto. Desta vez fisicamente, uma vez que já havia morrido para mim havia décadas. Mais braços e abraços. Mais votos de pêsames. O salão estava cheio, jamais suspeitei que meu pai tivesse tido tantos amigos em vida.
Cheguei ao lado do caixão. Pensei ter tido uma pequena vertigem, pois a viagem fora longa, cansativa, e ademais, estava muito abafado. Os olhos! Aqueles lindos olhos de um verde profundo, instigantes, observadores, irônicos, estavam abertos, a me fitar, a me decifrar! Não era possível, ele estava morto. Este era o seu próprio velório! Estou sonhando, será que as pessoas não enxergam?
Eu jamais pude ocultar qualquer coisa que fosse do olhar de papai. Jamais. Ele brincava dizendo ser um “bruxo” quando me pegava nas pequenas mentiras que filhos contam a seus pais. Nesse momento, postado ao lado de seu caixão, com o burburinho estranho das pessoas ao fundo, tudo se fez difuso. Fui me aproximando daqueles olhos, abaixando-me, inclinando-me lentamente, como se fosse beija-lo. Os olhos enormes pareciam duas grandes esmeraldas, com um brilho intenso e perturbador. Subitamente, comecei a ver as coisas por outro ângulo. Estranho! Muito, muito estranho. Deixei de sentir meu corpo. Podia ver o teto da...um minuto, este era o teto do salão onde meu pai estava sendo velado! Com horror percebo que vejo pelos olhos de papai. Horror maior, este não é mais seu velório e sim o meu próprio. Reconheço meu filho mais velho ao canto, receoso em aproximar-se. Minha filha grávida, ao lado de seu marido esquivo, tampouco se aproxima. Minha terceira esposa, aquela bem mais jovem, está estranhamente bem disposta, mesmo num vestido negro e justo, que lhe realça a ótima forma. Quero falar, há um engano enorme, eu não deveria estar aqui no caixão, este lugar é de meu pai!  Tento abrir a boca, mas algo estranho me impede, parece haver um chumaço de algodão dentro dela. Desesperado, vejo as faces compungidas daqueles que vem lamentar, sem me conhecer, a minha morte. Hipócritas! Eu estou preso, quero sair daqui! Um a um, estranhos, alguns vagamente familiares, se aproximam e prestam os últimos votos de respeito. Reconheço pessoas de muito tempo atrás. Minha mãe continua com a cara de nada, no canto. Aproxima-se alguém com um perfume familiar. Uma mão muito familiar. Olhos verde-esmeralda, com aquele olhar intenso. Um leve muxoxo no canto dos lábios. Meu pai me olha, estou morto, estanque, dentro do caixão que deveria ser dele. Não parece triste. Apenas curioso. Abre lentamente a boca e diz: eu te falei que sou um bruxo...


Cezar F. mais um microcontinho avulso. Bertioga 2012.

O SORRISO

Então, aquele homem experiente e sedutor se viu subitamente apaixonado por um sorriso. Um sorriso! Justo ele que, visceral, sensual e de extremos... jamais havia sido menos que carnal em suas paixões. Um sorriso. Não, deixe-me refrasear: O sorriso. Não apenas um sorriso. O rosto angelical e puro, mas não especialmente belo ou diferente de tantos que já admirara. Mas o sorriso.... ah, o sorriso. Ele transmitia paz. Mais: emitia amor. Candura. Intensidade. Entrega. Como se sugasse do mundo tudo o mais que existisse. Isso! Não havia mais vida ou importância fora daquele sorriso. Inebriante, avassalador, o sorriso foi extaindo do homem, seu recipiente, toda sua aridez, toda sua desconfiança para com a humanidade. Tornou-o de fato, humano, o que ainda não era. Isso tudo numa fração de minuto. Numa contradança. Num lugar qualquer numa cidade qualquer, num tempo indefinido. Que, aliás, tornou tudo nebuloso e sem sentido. Anulou o passado e desfez o futuro sem a imponente existência do sorriso. Transportou-o a outros mundos, a outros tempos a outros “Eus”. O fez compreender então, o encanto da pureza, coisa que jamais experimentara. Marcou-o e viciou-o. O sorriso. E ela nem era tão bela assim...

Crônica bestinha inspirada no clipe “Do you love me?” postada abaixo.....não sei o nome da moça, mas certamente ela terá inspirado muitos homens experientes. Eu? Não... sou apenas um escriba apaixonado pela arte de sentir....e nem tão experiente assim tampouco. 14/06/2012



A MONTANHA



— Sabe aquela montanha, o cume dela?
— Sim, estou vendo. Linda. Poética, até.
— Ela é minha. Toda minha.
— Mas como você sabe que é sua? Como Pode afirmar isso? Já foi lá? Espetou nela sua bandeira? Deixou sua marca?
— Eu não preciso. Ela me diz que é minha. Mais, eu sinto isso. Quando se ama com intensidade, não há necessidade de se fincar estacas, colocar bandeiras. E quando isso eventualmente acontecer ,será apenas mais um rito de passagem.

Cezar F. croniquetas do absurdo cotidiano.

O LIVRINHO


Passeando por uma destas feiras de pulgas, eu vi um velho livrinho de provérbios. Resolvi compra-lo, e em minha afobação, esqueci de folheá-lo. Ao chegar em casa, ao abril-lo, me decepcionei, pois todas as páginas estavam em branco, ou melhor, amareladas. Quando voltei para reclamar com o vendedor, este me disse: eu só vendo este livrinho para pessoas especiais, pois teve uma tiragem mínima. Eu disse, mas o que faço com ele, onde estão os provérbios? — Ele respondeu.....estão em sua vida, em seu cotidiano. Cada página vazia é um desafio para que você reflita e evolua. E assim tem sido......

SINCRONICIDADE


E num reino muito distante, conviviam os animais e os humanos. A única discrepância, se é que se pode chamar assim, eram as medidas relativas de tempo. Um elefante, por exemplo, vive quase duzentos anos. Já um inseto, poucas horas. Uma borboleta, dizem, dura apenas alguns dias. E havia a tartaruga, longeva e sábia. Neste mesmo reino, havia um príncipe a quem havia sido prometido uma linda princesa. Diziam que a princesa era linda, inteligente, meiga, prendada, sensual. Um sonho de mulher. E justamente, esse era o problema: ela havia se tornado apenas um sonho. Ambos os embaixadores estavam empenhados em solucionar as pendengas diplomáticas a fim de apressar o casamento, que além de resolver os problemas de coração de ambos, estreitaria os laços entre os reinos.
O príncipe costumava confidenciar-se com a sábia tartaruga. Um dia, não aguentando mais as saudades da elusiva amada disse para a confidente: — sinhá tartá, não sei mais o que fazer. Cansei de esperar, é como se o tempo nada significasse para a princesa Dalia. Eu já tenho notado me surgirem os primeiros cabelos brancos, daqui a pouco nem filhos poderei gerar. Mas ela, entretida com seus afazeres, parece não ter a noção da passagem do tempo.
A tartaruga, que aliás não curtia ser chamada de Tartá, mas sendo o príncipe quem era, consentia, respondeu: — Sábio e nobre amigo. Homens e mulheres são como nós animais: têm escalas de tempo diferentes. Para os homens tudo é para hoje, para ontem. Para as mulheres, que contemplam a vida pelas janelas, o tempo é apenas um rio fluindo lentamente a conduzir o destino. — Mas o que fazer, indagou o príncipe aflito? — Dona tartá não precisou pensar muito para responder: — Faça do tempo um aliado. E tentem sincronizar seus respectivos relógios. Se isso não for possível....certamente outros relógios irão surgir......
O príncipe então disse: — relógios? Já testei vários. Cronológios, digitais, mostradores grande e pequenos. Coloridos. Pretos. Brancos. O problema é que este relógio tem um mecanismo mágico....e eu quero apenas este . — Paciência, então meu amigo. Por que não vais bater um papo com o compadre elefante? Ele tem bastante tempo......

MUDAR


Uma linda menina andava chorosa pelos cantos. Uma fada dessas que não existem, a não ser na minha historia aproximou-se e quis saber o que acontecia.
A linda menina disse:
— Eu queria tanto mudar!
— Mas mudar o que, minha linda? Você é perfeita do jeito que é.....sincera, emotiva, carinhosa, companheira, fiel, leal......o que quer mudar?
— Eu não consigo agradar a todos...
— Ai , meu anjo, o caso é diferente. Não se trata de mudar. Trata-se de fazer escolhas. Nesse ponto tem que ser um pouco egoísta. Em primeiro lugar, tem que estar bem consigo mesma. È impossível, como sabemos, agradar a gregos e troianos. Uma vez que você faça esta escolha....tudo se encaixará perfeitamente!
— Mas como saberei a quem agradar?
— Já respondi. Agrade a você mesma. E se as pessoas realmente gostarem de você, não importa como seja, aqueles que te amam estarão junto de você para o que der e vier!

Cezar F – Fábulas anônimas recolhidas de uma garrafa que estava a deriva no mar, praia da Enseada, Bertioga, circa 1911.

terça-feira, 3 de julho de 2012

O ALFAIATE E A COSTUREIRA



Conversavam de certa feita um alfaiate e uma costureira. Falavam das nuances de sua profissão, das novas modas e tendências e de como era difícil agradar os clientes.
O alfaiate dizia então que seus clientes quando o procuravam, já tinham uma boa ideia do que queriam. Aceitavam sugestões de bom grado, e de modo geral, eram facilmente atendidos.
Já a costureira comentava exatamente sobre o quanto era difícil agradar as mulheres. Estas queriam sempre que suas roupas fossem de um tamanho menor do que aquele que efetivamente usavam, reclamavam dos estilos, dos tecidos, das cores da moda. A costureira que tinha um pouco de filósofa também concluiu: mulher gosta que as coisas se ajustem a elas,  mas elas próprias dificilmente se ajustam às novas circunstancias. Quando algo novo entra em suas vidas, é necessário abrir espaço para que este novo elemento receba sol e agua e possa assim crescer, do contrario, acaba sufocado....
Como naquele velho poema de Fernando Pessoa:  “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.”

Cezar F. microcontos de um cotidiano fugaz – junho 2012.

PAROLE, PAROLE



Voltei mais uma vez àquela casa. Relutante, como sempre. Minha vó habitava ali e sua extrema sabedoria me inibia e me afastava para longe. Mas desta vez eu definitivamente precisava ouvir seus conselhos. Lembrava-me das horas vazias, intermináveis que fitando o teto da humilde casa, vigas descascadas à mostra, destino oculto por detrás de uma penumbra difusa, esperei o futuro se apresentar e me recolher da insignificância involuntária.
Voltei, no entanto, para tentar apaziguar meu coração aflito. Ela como sempre, me fitou serena, seus olhos tão cheios de amor que me fuzilavam acusando minha incapacidade de retribuição.
— Vó?
— Meu filho, você está tão magro — começou na eterna cantilena de todas as avós do mundo.
— Vó, o que eu faço com as palavras que digo e depois me arrependo de ter dito?
— Meu filho, palavras são como pedras: se planejadas, colocadas uma a uma, com capricho em cima de outra, constroem-se com elas pontes, estradas, cidades, castelos. No entanto, se soltas, disparadas aleatoriamente, podem matar, mesmo àqueles mais fortes, como David fez com Golias. São armas letais.
— Vó....mas as tais pedras atiradas a esmo, sem pontaria, não podem ser recolhidas e com elas recomeçarmos nosso castelo?
— Depende, meu filho. Se você as recolher cuidadosamente, com muito amor e do outro lado, quem foi atingido também tiver este mesmo amor, juntos podem sim, construir o que quiserem. Principalmente pontes.
Me despedi e não aceitei o pão sempre quentinho e o leite que me ofereceu. Não queria que visse, que pela primeira vez, meus olhos estavam úmidos. Aquela velhinha.....


Cezar F. “mais uma crônica bestinha de um cotidiano aleatório....”  junho de algum ano aí.

terça-feira, 5 de junho de 2012

A FOTO



A FOTO

O click veio ao mirar-se no espelho naquela manhã de maio. O espelho sempre estivera ali, cumprindo fielmente sua função de espelhar o rosto e auxiliar no barbear, mas naquele dia em particular, justamente no dia do seu qüinquagésimo - primeiro aniversario, deu-se a revelação. Nada mais seria como antes, e como poderia, afinal, se um despertar desses ocorre, você precisa reagir mudar, tentar, ao menos.
Até aquele dia, Mário era feliz. Muito feliz. Casara-se (por amor, paixão e um descuido reprodutivo) com Ângela, sua paixão de adolescência. Tiveram quatro filhos, três rapazes e uma linda menina, a caçula, Nina. Fizera um concurso publico, sepultando talvez os sonhos de um destino grandioso, mas a segurança proporcionada por um salário e os benefícios que cresciam com o tempo, compensavam as eventuais recaídas de arrependimento. Com o tempo e a nevoa que este traz sobre situações e sonhos do passado, tudo ficara bem. Bem até demais.
A mudança foi brutal, chocante. Era difícil definir de onde partira o ponto de ignição, mas sabia que agora, a partir deste exato momento, nada mais seria como antes. Impossível definir com precisão o motivo de tanto desconforto, mas havia um comichão dentro de si e sabia que teria que fazer algo. Vestiu-se, após barbear-se, alias como fazia todos os dias. Desceu as escadas para o andar inferior e a casa lhe pareceu estranha, como se a visse pela primeira vez. Mal respondeu ao bom dia da empregada que cruzou com ele carregando um fardo de roupas passadas e ao chegar à copa, para o café da manhã de todos os dias, avistou quatro estranhos, que pouca atenção lhe deram.
- Vou dizer uma coisa importante e quero que todos me ouçam – falou em uma voz que reconheceu não usar havia muito tempo, tão autoritária e solene lhe soou.
Mesmo sem muita pressa, Ângela, alguns quilos a mais e a beleza ainda evidente, apesar dos cabelos tingidos que ele detestava, e os três mais velhos, Mario Filho (nada original, mas cedera, sempre cedera às opiniões de Ângela), Paulo e Ricardo o fitaram com uma expressão mixta.
- Vocês são minha família e eu tenho vivido por vocês todos esses anos. Amo a todos e não me arrependo de nada, mas a partir de hoje, e caso não se recordem, hoje é o meu aniversario, as coisas vão mudar por aqui.
Palavras sobrepostas de congratulações, os filhos levantando para abraça-lo (realmente ninguém se lembrava do aniversário do velho), Ângela meio contrariada, pois planejara um jantar surpresa e mesmo ele, jamais se recordava desta data, foram interrompidas com um gesto.
- Parem. Quero que levem isto a sério. Isto é sério!
Os olhares meio debochados dos três filhos o animaram, ao contrario do que poderia se supor.
- Vêm? É disto que estou falando: vocês não me levam a sério, estão tão acostumados em suas boas vidas de burgueses, suas existências medíocres e “babacas” que não percebem o egoísmo que praticam!
Os termos que usava no dia a dia jamais chegariam perto  de tamanha vulgaridade. Isso fez com que os filhos, principalmente, percebessem que havia algo de anormal naquele dia. Voltaram a sentar-se e quietos, esperavam por maiores explicações. Ângela tentou abraça-lo, mas foi afastada sem muita suavidade, o que a magoou e fez com que recuasse e sentasse ao lado dos filhos.
O homem de pé, no meio da copa, a mesa posta, os filhos e a mulher o olhando atônitos, era a cena que tínhamos. De repente, veio um branco. Mario olhou a todos, fez um gesto de desistência e disse:
- Bahh.....do que adianta, vocês jamais entenderiam, isso não tem importância.
Sentiu o alivio geral e os sorrisos tímidos voltaram a enfeitar os quatro rostos incrivelmente parecidos, sugerindo que sua contribuição à genética da prole tenha sido um tanto secundária. Ninguém perguntou nada, viraram-se em suas respectivas cadeiras e voltaram a comer. Aquilo o desanimou ainda mais, mas estava decidido. Iria mudar e a mudança já começara, só que pelo lugar errado.
Despediu-se de todos, após receber novamente os votos de felicidades, apanhou seu paletó e dirigiu-se a garagem. Ângela, sua bela e estranha esposa, a quem pensava conhecer tão bem e agora percebia que viver junto de uma pessoa, dormir, e acordar ao seu lado por bons vinte e cinco anos, não garantiam intimidade, o seguiu. Chegando á garagem que ficava sob o belo sobrado, ela lhe disse:
- Querido, você está bem mesmo? Por que não tira o dia de folga? Você trabalha tanto, precisa descansar um pouco, cuidar mais de sua saúde.
Ela jamais compreenderia. Olhou em volta, a garagem super lotada, com quatro carros espremidos entre motos, Jet ski, e outras caras quinquilharias que deixaram de ser favorecidas pelos filhos. Balançou a cabeça e entrou no seu carro, por sinal o mais modesto de todos.

Ao chegar ao trabalho, sua secretaria, dona Simone, uma simpática senhora que já o assessorava há anos, lhe deu os parabéns. Os subordinados haviam preparado uma pequena comemoração com bolo e doces, o que ele suportou estoicamente. Estava confuso e em sua cabeça ainda buscava as razões para a brusca mudança de pensamento, que tivera esta manhã. Até ontem a noite era um homem, feliz na medida em que se pode ser feliz com uma realidade baseada em posses, e sem grandes questionamentos. Agora sabia que jamais seria o mesmo e vasculhava sua mente para o ponto que havia provocado aquela mudança.
A foto! Sim, tinha que ser aquela foto, mas onde estaria ela? Talvez o ângulo com que se olhara no espelho o tenha remetido a uma lembrança trancada há muitos anos dentro de sua mente. Sim, era aquilo! Chamou dona Simone e alegou não estar se sentindo bem, dizendo que voltaria para casa e se melhorasse, a tarde voltaria. Sentou-se no carro impaciente e o transito que sempre lhe  irritara estava particularmente lento naquele meio de manhã. Ansioso, procurou vias alternativas e em menos de meia hora estava novamente em casa. Entrou pela garagem, tirou o paletó e dirigiu-se aos fundos da imensa garagem subterrânea de sua bela casa. Começou pelas caixas maiores, aspiradores de pós, brinquedos das crianças, lembranças de outra vida, mais modesta. Ouviu passos na escada e Ângela, espantada em vê-lo novamente ali, demandava uma explicação.
- Estou procurando uma caixa de fotos antigas, as que eu trouxe da casa de mamãe, lembra?
- Meu bem, as fotos estão dentro daquelas malas enormes que compramos naquela viagem à Disney, lembra? Vou te ajudar.
-Não precisa. Eu me viro, prefiro ficar sozinho, se não se importa.
Ângela olhou-o com enorme estranheza, pois certamente seu Mario não era assim, mas resignou-se e voltou a subir para o andar superior, deixando-o entre suas muitas recordações provocadas pelos enormes álbuns de fotos de sua infância e adolescência.
Fotos e mais fotos sucediam-se diante de suas retinas, mas ele sabia qual buscava. Demorou outra boa meia hora até que, finalmente, encontrou-a. Sim, não havia dúvidas, era aquela foto que buscava e sim, reconhecia o mesmo ângulo que o espelho lhe devolvera. O mesmo rosto forte, as sobrancelhas espessas e claras por sobre os olhos de um azul esverdeado que fizera muito sucesso nos idos da década de sessenta, quando o mundo ainda acreditava. Sentou-se a um canto, sem largar a foto e começou a chorar. Baixinho e quase silenciosamente a principio, mas num crescendo não mais conseguia segurar as lagrimas e o choro tornou-se convulsivo. Isso durou alguns minutos e agradeceu pela discrição da esposa que o deixara em paz.
Um filme passou pela sua cabeça e pode ver toda sua infância, seus amigos, seus sonhos e tudo parecia ter sido engolido por uma avalanche de coisas sem importância. Um emprego sem ideais, um dinheiro que nunca bastava, um consumismo desenfreado e sem propósito, mas aquela foto, aquele olhar de um jovem de doze anos lhe trouxeram novamente à razão. Sim, foram os olhos, grandes, sonhadores, cheios de esperança que tinha aos doze anos, que acusadoramente o condenavam agora, quase quarenta anos depois, pelo que havia se tornado. Aquele garoto, segurando-se num tronco de arvore, com shorts curtos e camisa colorida, um kichute velho nos pés e o sorriso mais límpido que jamais tivera, impoluto, agora exigiam que ele voltasse atrás.
Mergulhou num mar de si mesmo e resgatou os sonhos do garoto de doze anos. As travessuras, as dificuldades financeiras de sua família, os ideais. Sabia que mudara e agradecia por isso.
Levantou-se e subiu para a casa. Ângela, interrogação aflita no olhar, apenas o seguiu, silenciosamente. Despiu-se ao chegar ao quarto, tirando primeiro a gravata, símbolo de uma importância que sabia não ter. Sentou-se na cama e olhou para o vazio. Voltou ao banheiro e novamente, o espelho lhe devolveu aquele olhar. Pegou a foto, olhou a confusa e quase desesperada esposa, mirou à sua volta. Pediu para ficar sozinho. Ela saiu silenciosamente do quarto. Ele chorou. Dormiu. Despertou e dirigiu-se ao banheiro, com a foto numa das mãos. Abriu uma gaveta, onde sabia que Ângela escondia um pequeno isqueiro. Segurou-o firme e a chama lhe trouxe outras sensações conflitantes. Ergueu a foto e dirigiu a chama para a borda inferior. Segurou-a, enquanto queimava, pelo tempo que pôde. Soltou o pedacinho de papel queimando dentro da cuba da pia e observou as cinzas. As cinzas da foto e as cinzas do que fora.
Decidiu seguir sua vida da forma que estava. Muito tarde para olhares acusativos. As cinzas queimam e o coração cicatriza. Pelo menos, é o que Mario espera.