domingo, 15 de julho de 2012

A CAUSA


 O homem de longos cabelos brancos demonstra especial interesse numa pequena nota de jornal deste outubro de 2003. “Governo cria comissão especial para investigar mortos e desaparecidos no Araguaia”. A idéia veio como um raio, pronta, embalada, de uma só vez! Era isso!
Deparou-se com um centro velho de São Paulo decadente e cheio de ambulantes e homens-placa. Trazia um pequeno papel com o endereço do que procurava e acabou encontrando afinal, um prédio antigo e mal cuidado. Entrou sem que ninguém lhe perguntasse aonde ia, e no pequeno escritório do terceiro andar, o homem de olhar desconfiado o atendeu. Vamos descer meu camarada, falamos na rua. Sem entender, seguiu o outro pelas escadas abaixo, e então para a rua.
“Posso lhe conseguir os documentos que quer, mas claro, tudo tem um preço.” A afirmação seguida de um sorrisinho cínico, enfatizada pelo bigodinho “a la” Cantinflas do personagem à sua frente não ajudou muito a melhorar seu estado de espírito.
“Vou pensar, mas antes quero saber o quanto custa”.
“Farei um desconto especial para você, em nome de sua amizade com o Boró. Cinco mil. Por tudo.”
“Cinco mil está caro!”
“Uma pechincha. Uma pechincha. E o resto do processo é rápido, sempre se conhece alguém que facilite as coisas.”
“Essa parte eu sei. Está bem. O que você precisa?”
“A grana. O resto a gente inventa, cria. Metade a vista e o resto na entrega. Passar bem.”
Afastou-se rapidamente e perdeu-se entre os transeuntes daquele comecinho de noite na movimentada praça no centro de São Paulo. O homem mais velho ficou parado ali, por um tempo, refletindo no que estava prestes a fazer e concluiu que isso não era diferente de muitas coisas que fizera a vida toda. Iria seguir com o plano, seja o que Deus quiser! Precisava arrumar o dinheiro, mas para isso podia contar com Alzirinha.


1968.

Dentro do pequeno apartamento, nos arredores da cidade de São Paulo um grupo de jovens confabula animadamente, ainda que em voz baixa. Planejam uma ação ousada para angariar fundos para sua causa. São inconseqüentes, ousados e inexperientes. Seu líder é Flavio Dalmas, um estudante de Direito do Largo de São Francisco. Sua noiva, Maria Helena Jordão, uma mulher madura na faixa dos 30 anos e muito atraente, estava ao lado, como sempre. Antonio Xavier França é o seu melhor amigo e também está presente. Outros integrantes conversam e entre eles destaca-se um novato, primo órfão de Maria Helena, Bernardo Osório Jordão. Um pouco mais novo que os demais, de estatura mediana, cabelos lisos, usa um topete á moda de Elvis, e aparenta bem menos que os vinte e dois anos que alega ter. No começo Flavio não queria usá-lo, mas foi o próprio Bernardo quem argumentou que com sua aparência de adolescente, poderia infiltrar-se com mais facilidade em certos ambientes. Fazia sentido, afinal.
O plano era simples: seqüestrar um industrial importante, exigir uma alta soma á título de resgate e enviar o dinheiro para os companheiros perdidos nas selvas do Araguaia. Simples na teoria, claro, mas quem iria dizer isso àqueles jovens tão cheios de entusiasmo e animação?
A sorte conspira a favor. Batem à porta, alguém vai atender e volta acompanhado do “japonês”. Esse é um dos mais enigmáticos integrantes do grupo, sempre chega atrasado, e vai embora antes dos demais. Traz consigo uma edição da “Folha da Noite”, recém saído das prensas.
“Tenho aqui o nosso alvo, olhem: um figurão mexicano, executivo de uma multinacional americana de carros, o sujeito é um exibicionista e abriu sua casa para a repórter da seção “Lares de Sonho”.
Todos olham para o jornal e realmente está tudo ali: os sofás caríssimos, os quadros nas paredes, a piscina, as trocas de roupa da cafonérrima esposa, com um vestido diferente em cada foto, os cachorrinhos pequenos, até mesmo o endereço da tal mansão.
Então era isso. Planejamento rápido, ação contundente e sorte de principiante. Eis que em menos de uma semana, do início ao fim, aquele grupo de jovens mal saídos da puberdade conseguem perpetrado uma das mais audaciosas e bem sucedidas operações criminosas até então no país. Não foi preciso usar violência e a grande corporação providenciou o pagamento do resgate rapidamente. Mal acreditavam que a coisa havia sido tão fácil!
Aquela grande e pesada sacola de lona, recheada de dólares, ficou debaixo da cama do apartamento por quase dez dias, até decidirem como enviar o fruto de sua ação para os companheiros no norte do país. Eventualmente, Bernardo foi o escolhido, justamente por sua aparência de menino. Ele que na última hora não pudera participar diretamente da ação de seqüestro, acometido de terríveis cólicas, agora poderia ser útil afinal. Traçou-se um roteiro complicado, que envolvia uma viagem de ônibus até Salvador, com paradas no caminho, e de lá para Belém de navio. Numa segunda feira de manhã, Maria Helena, dirigindo o fusca branco de Flavio, deixou Bernardo na rodoviária com suas malas e aparência de colegial de férias.

2008

O elegante gabinete do Ministério da Justiça, na esplanada dos Ministérios em Brasília, com sua decoração sóbria e amplas janelas, abriga mais uma reunião de rotina. O poderoso assessor do Ministro, homem em seus cinqüenta e poucos anos, bronzeado e muito bem disposto, atende pelo nome de Francisco Pavuna. Militante de importante partido de esquerda ascendeu ao poder graças aos seus dotes de negociador moderado, ainda que firme. Sua diplomacia, sua elegância, seu domínio de vários idiomas fazem dele um ser quase anacrônico numa militância que às vezes extravasa a simplicidade de suas respectivas origens.. Neste momento estão a discutir as polêmicas indenizações dadas aos ex-combatentes da ditadura militar que governou o país nas décadas de sessenta e 70. Dezenas de processos estão dispostos em pilhas numa mesa ao lado, e um funcionário relata a situação de cada pessoa, seu envolvimento, suas prisões, o valor a ser concedido.
Francisco Pavuna é sempre um dos mais comedidos e toma notas cuidadosamente em sua agenda de capa de couro preta. Alguns nomes lhe são familiares, de anos passados, de outra vida, parece. A voz do relator começa a ficar monótona e é sempre a mesma seqüência: “Processo número 214/2002 de Agnaldo Beirão contra a União. Agnaldo... e continua. Processo número 215/2002 de Gerson Rodrigues França contra a União.”
Francisco olha para fora da imensa janela, e pensa em sua casa à beira do lago. Está ansioso pelo final de semana, onde poderá finalmente ter um descanso. Não pode se queixar: tem status, um bom emprego, dinheiro e o respeito das pessoas.
“Processo número 216/2002 família de Bernardo Osório Jordão contra a União.” Francisco deu um pulo na cadeira! Aquilo não era possível, aquele nome não existia mais! Tentou parecer natural e pediu para que o relator passasse a pasta a ele após a leitura. Segurou-a com força, com as mãos suando e pediu licença, dirigindo-se a seu gabinete no mesmo andar. Um fluxo de memórias invadiu sua mente trazendo uma sensação muito desconfortável. Começou a suar frio, temendo ter um ataque cardíaco ali mesmo. Procurou controlar-se, tinha que descobrir quem estava por trás daquele embuste. Quem era a família? Abriu a pasta com o processo e constava apenas um nome de mulher, Cristina Jordão, 41 anos, filha. Como era possível? Bernardo não tinha filha alguma, alguém estava tentando aplicar um golpe. Precisava localizar esta Cristina. Não havia número de telefone, mas sim um endereço em Bertioga, litoral norte de São Paulo. Cancelou seus compromissos para o resto da semana e tomou o primeiro vôo para a capital paulista. Chegando ao Aeroporto de Congonhas, dirigiu-se ao guichê de uma locadora de carros e pediu um modelo popular, não queria chamar a atenção. Tomou um café e adquiriu um mapa rodoviário na banca de revistas do Aeroporto, enquanto o carro era preparado.
Entrou no pequeno Gol branco e dirigiu-se para a Avenida Bandeirantes, e dali para a rodovia Imigrantes. Fazia anos que não vinha para aqueles lados, pelo menos de carro, de helicóptero tudo era muito mais fácil.
Bertioga é uma cidade pequena, em vias de desenvolvimento á beira mar. O endereço dizia: Avenida Anchieta. Não foi difícil localizar a antiga estrada que corta a cidadezinha paralelamente ao mar. Sua ansiedade aumentava muito. A pequena casa era no fundo de um terreno grande. Parou o carro, observou se não havia cachorros e abriu o portão. Havia um carro antigo parado na frente e nenhum sinal de vida. Avançou alguns passos em direção a casa e bateu palmas. Ouviu ruídos do lado de dentro e mal pode acreditar quando viu quem o atendeu:
“Você?” exclamou atônito.
“Sim, Bernardo. Pensou que eu havia morrido também?”
Francisco/Bernardo encarou Flavio, seu velho companheiro de guerrilha. Flavio disse:
“Fugir com o nosso dinheiro foi uma péssima idéia. E dizem que entregou os companheiros para os militares também.”
Bernardo mal conseguia respirar. Retrucou: “Eu admito ter fugido com o dinheiro. Mas havia pouco mais de dez por cento naquela mala. Nunca entreguei ninguém, juro. Tive uma oportunidade de viajar para a Europa e fui, mas jamais dedurei ninguém. Você precisa acreditar nisso.”
Flavio disse: “Não fique parado aí fora, entre, vamos.”
Bernardo hesitou um pouco, temia pela sua vida, mas não viu alternativa. A casa era modesta, mas espaçosa e confortável.
“Como posso conceder uma pensão á uma filha que jamais tive?” Como posso anistiar a mim mesmo? Que tipo de brincadeira é essa?”
“Brincadeira nenhuma, Bernardo. Apesar das plásticas que fez, sua vaidade o levou a perder-se. Reconheci-o em uma das entrevistas que deu à televisão. Quem é Francisco Pavuna afinal?”
“É alguém que conheci no exterior e que morreu muito jovem. Não tinha família, poucos amigos, nada que chamasse a atenção. Retornei ao Brasil antes da anistia e precisava de uma identidade segura. Suponho que agora você vá me entregar ou querer algo pelo meu segredo?”
“Você esta enganado, Bernardo. Você já me deu muito mais do que imagina. E vai conceder a pensão á Cristina, que de qualquer forma virá parar em meus bolsos. Seu segredo e sua vidinha de jatos e viagens estão seguros.”
“E quanto a você, Flavio?” Bernardo recuperou um pouco de sua frieza. “O que fez durante esses anos todos?”
“Bernardo, vive-se muito bem na Suécia com algumas centenas de milhares de dólares. Mas infelizmente o dinheiro acaba, paga-se impostos, e as mulheres européias são caras.”
Bernardo olhou bem o ex-amigo. Não sabia se sentia nojo ou pena daquele homem parado a sua frente, tão diferente do jovem idealista que outrora conhecera. Entregara os próprios companheiros ao ser preso. Roubara o dinheiro e traíra a causa.
“E a causa, Flavio?”
“A causa somos nós, Bernardo. Sempre somos a causa. Os anos passam, o mundo muda, e todos querem cuidar de si mesmos e dos seus. Você precisou de um novo nome, um novo rosto e uma nova identidade. Qual era a sua causa afinal? Eu fui preso, torturado e admito, acabei falando mais que devia. Estávamos todos condenados, você sabe disso. Mas havia o dinheiro e ele passou a ser meu por direito, pelas cicatrizes que vou carregar para sempre.”
Bernardo sentou-se. Preferia ser Francisco, afinal. Daria a pensão a uma filha inexistente para manter o segredo fechado. Uma causa pode ter preços e conseqüências. E alguém, em algum lugar tem que pagar por eles. Só não estava seguro se tudo aquilo fazia algum sentido. Sentiu-se oco e desprovido de propósito. Levantou-se e disse a Flavio:
“Fique tranqüilo. Sua causa não vai te abandonar agora. Vou providenciar para que tudo corra a contento.”
Virou-se e partiu. Iria anistiar um morto que era ele mesmo. Um ser que talvez jamais tivesse existido de verdade. Sentiu-se um pouco morto também. Talvez estivesse mesmo. Sentiu saudades do jovem idealista que fora há muitos anos. O mar continuava a empurrar as ondas contra a areia e estas teimavam em retornar para o fundo. O fluxo das marés explica muito das vontades dos homens.

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