quinta-feira, 31 de maio de 2012

VASO RUIM QUEBRA SIM



Vaso ruim quebra sim


Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Jeremias deu de si no topo da cômoda do quarto, transformado num grande vaso. Aquilo era deveras incômodo e ele tentou beliscar-se, para despertar de um sonho – ou pesadelo – mas vasos não têm braços, e aquele em particular era feito de argila e só tinha duas pequenas argolinhas perto do topo. Que maçada!  O interessante é que apesar de não ter olhos propriamente ditos, podia ver tudo em sua volta num ângulo de trezentos e sessenta graus. Começou lentamente, ainda em choque, a perscrutar o ambiente que o cercava. Estranhou inicialmente o tipo de mobília, bastante escassa, feita de madeira rústica e grossa, as paredes de pedras nuas, o teto baixo e o catre, sim, aquilo não era uma cama, feito de madeira e com tiras de couros a fazer as vezes de estrado, sem colchão, lençóis, nada.
Jeremias, apesar de vaso, podia pensar nítidamente, e aterrorizado por sua temporária (ele esperava) forma física, passou a tentar achar soluções para reverter-se ao que era antes. Jurou a si mesmo jamais voltar a reclamar de sua forma humana um tanto quanto rotunda – excessos de cervejas e frituras, associados ás promessas nunca cumpridas de uma dieta e matricular-se numa academia- e estranhamente sentiu falta de seus dedos dos pés. Nem gostava tanto assim deles, tinha pés chatos e o dedão do pé direito na realidade tinha uma unha eternamente encravada, mas decidiu que preferia mil vezes suas unhas manchadas, sua papada protuberante, sua pança deselegante, seus joelhos tortos que ser um simétrico vaso de barro!
Que me aconteceu? – pensou. Não tinha idéia e nem recordações da noite anterior, de como fora parar ali, às vezes bebia um pouco demais da conta, mas não era o caso da noite anterior. Lembrava-se perfeitamente ter se recolhido a seu quarto mais cedo que de costume, tinha uma leve indisposição estomacal, rodízio de sexta-feira sempre o fazia abusar um pouco das carnes mais gordas, e até havia cancelado uma festinha de aniversário de criança no prédio, ao pensar nos gordurentos salgadinhos.
Fazendo uso de suas recém-adquiridas habilidades de enxergar em volta, percebeu não estar no habitual sétimo andar de seu apartamento, onde vivia modestamente com sua mãe viúva e o gato Max, e sim no nível do chão. Estranhou também o sol forte do lado de fora, pela época do ano, estavam em estação de chuvas, e sol brilhante feito este não via há semanas.
Subitamente ouviu vozes vindas do lado de fora e pensou que a situação seria esclarecida de uma maneira ou de outra. Dois tipos estranhos, vestidos para alguma festa à fantasia ou baile de carnaval, tal qual tribunos romanos, adentraram o quarto e aparentemente não o notaram. Falavam em voz alta, num idioma grosseiro cheio de altas entonações anasaladas, mas estranhamente, Jeremias entendia cada palavra do que diziam! Esta era a segunda maior surpresa do dia, e estava acordado há apenas poucos minutos, nem imaginava ainda o que estava por vir!
Estavam confabulando os dois! Esperavam uma terceira pessoa e tratavam-se de maneira cerimoniosa e íntima ao mesmo tempo. O primeiro, que logo Jeremias percebeu chamar-se Cássio, tentava convencer o outro, Casca, a aderir a um plano qualquer e a palavra “eliminar” – seja qual a língua que falavam – era pronunciada de uma maneira solene e definitiva. Pensou ouvir o nome Cesar e também começou a fazer idéia do que se tratava, pois a única peça que tinha assistido no teatro da escola, há anos e anos atrás, foi justamente “Julio Cesar” de Shakespeare. Na época não a entendeu completamente, apaixonado que estava por Glorinha Madalena, a gordinha (fofinha?) mais sexy de toda a escola, recatada, evangélica e, descobriu-se depois, rodriguianamente devassa. Por Glorinha tinha ido ver a peça e por Glorinha, perdeu boa parte da trama, impregnado de suas madeixas negras, sua nuca redondinha e branquinha bem na fila da frente.
Ok, mas meus problemas imediatos são de maior monta pensou o vaso, digo, Jeremias. Preciso escapar desse pesadelo, será que colocaram algo em minha cerveja?- o pessoal da repartição é dado a essas palhaçadas, mas nem havia bebido tanto assim!
Enquanto pensava com seus ausentes botões, os dois continuavam a confabular e a tramar e um barulho de fora foi a deixa de que havia uma terceira pessoa prestes a adentrar o quarto. De fato, outro tipo atarracado em fantasia, digo, roupas de romano, chegou e após os beijos na face de costume, entreolharam-se e começaram a tramar. Pobre Cesar pensou Jeremias, com a vantagem de saber como terminaria a história e a desvantagem de estar vaso e não poder fazer nada para impedir, preocupação, aliás, que não tinha, sua maior vontade era voltar para ontem e despertar.
De repente, ouve uma garganta raspando, saliva sendo negociada entre o esôfago e a garganta, outra profunda arranhada nasal e záz-traz: o maldito Casca acaba de cuspir nele! Dentro dele! Era isso então, ele não era um vaso, mas sim um tipo de escarradeira, nojento demais! Se tivesse estômago, teria vomitado ali mesmo, mas percebeu que sendo vaso e, portanto, não tendo entranhas, podia ter suas vantagens, afinal. Era oco, mas não totalmente desprovido de sentimentos, quando a segunda cuspida veio sibilante em sua direção, e a pontaria do maldito Cássio era muito pior que a de Casca, um filetinho de saliva ficou pendurado numa de suas bordas. - Meu reino por um cavalo, havia dito Napoleão, minha vida por uma espada e mostro a estes energúmenos em quem vão cuspir, porcos! Uma espada para um vaso? Pouca utilidade, realmente.
Os confabulantes continuavam a falar em sua maneira empoada e enrolada, as palavras iam e vinham dando voltas e volteios, em círculos hesitantes e ele sabia perfeitamente onde estes porcalhões estavam querendo chegar. O que não lhe importava muito, pois agora começava a bater um desespero ao ter ciência de sua situação atual: era um vaso, ou pior, uma escarradeira romana, escondido numa frestinha qualquer do tempo, perdido na história poeirenta tal qual um objeto de cena, pouco importante numa peça de teatro decadente.
As palavras ditas em ritmo cadenciado, mais os círculos que os três conspiradores faziam ao caminhar em volta de um eixo imaginário no quarto, foram dando sono ao nosso Jeremias que, sem perceber, acabou cochilando. Lentamente as palavras foram cedendo e perdendo ritmo e nexo. No sonho do vaso, este se imaginou um herói. Sim, um vaso herói! Com direito a escravos, amantes, uma biga veloz – vermelho Ferrari, quiçá – e todos lhe saudando à passagem: Hail Cesar Jeremias! Sonhos são sonhos, oras. De alguma maneira ele conseguia frustar a tentativa de assassinato do grande imperador, trocando a adaga de Brutus por uma dessas de cenário de filmes, sem cortes. Os conspiradores eram presos, julgados e jogados aos leões na Arena. O vaso, coberto de glórias, limpo e jamais escarrado novamente, alçado à condição de nobre, havia mudado o curso da historia!
Mas o destino não quis assim! Cruel destino que assombra e atrapalha trajetórias humanas, cheias de vontades egos e orgulhos, quem dirá de um simples vasinho/escarradeira de barro, sem grife. Jeremias acordou ainda vaso. Soltou um suspiro profundo, que não foi notado por ninguém, pois os tribunos haviam partido. O sol já se punha lá fora e as sombras da noite aproximavam-se velozmente do pequeno quarto. O silêncio era quase total e inquietante. Quase, porque se podia ouvir o zunido de cigarras do lado de fora, em seu incessante lamento cadenciado. A noite caiu por completo. Jeremias ouviu passos apressados. Algum desastrado havia esquecido sua espada sobre a cômoda, justamente atrás de Jeremias. Uma tocha adentrou o quarto, equilibrando-se precariamente numa mão grossa, e tão célere quanto entrou, caiu ao chão. A mão tateou a cômoda e esbarrou em Jeremias, o pobre, que desequilibrado, estatelou-se no chão duro, bem ao lado da tocha, partindo-se em mil pedaços.


quarta-feira, 30 de maio de 2012

QUIRALIDADE




Quiralidade*

Pequena alma terna flutuante
Hóspede e companheira de meu corpo,
Vais descer aos lugares pálidos duros nus
Onde deverás renunciar aos jogos de outrora....
                                                                          P. Élio Adriano, Imp.

Então é assim! Luzes cintilantes, piscando intermitentemente. O momento final, os clarões, o túnel estreito, o aperto no peito. A sensação de ir escorregando devagar de costas, o frio na barriga. Muitas imagens sobrepostas, um neon louco de visões. Nada de som, um filme mudo e colorido. E correndo velozmente para trás! Retrocedendo no tempo, rostos, lugares, num frenesi doido. Aqui e ali uma lembrança mais marcante. Mas espera! Quem são essas pessoas? São estranhos e ao mesmo tempo, parecem familiares. Fragmentos que escapam, pedaços desconexos de um quebra-cabeças.
A montanha russa invertida continua cada vez mais rápida. Pode ver as pessoas sorrindo ou sérias, algumas circunspectas, sons tímidos chegam fora de sincronia, atrasados como numa transmissão de televisão defeituosa, um satélite antigo.
Os olhos semicerrados efetuam movimentos circulares rapidíssimos, como a antecipar avidamente o próximo rosto, o odor seguinte, sim, agora as lembranças vêm em cascatas e com cores, cheiros e sons. Difícil parar aquela sensação de queda no abismo. Nivelar os pensamentos, turbilhões de sensações sobrepostas, contraditórias, em golfadas. Apesar da velocidade crescente das memórias que o impedem de raciocinar com clareza, tem uma certeza: está morrendo e este é o seu derradeiro momento. Exatamente como diziam os antigos, a sensação de levitar, de deixar o corpo suspenso no espaço, sem forma física, desprender-se da matéria, na hesitação natural da partida.

A boca seca, as dores no corpo, a letargia. Argh! Abriu devagar os olhos, teve vontade de beliscar-se. Sentiu júbilo por saber que havia sido um pesadelo, um sonho péssimo, mas apenas um sonho, afinal. Decidiu não falar sobre isso a ninguém, nem mesmo a esposa. A sensação quase-física de um sonho pesado, mais do que um pesadelo comum o atormentou o dia todo. Passou a ler bastante sobre o assunto, consultou amigos espíritas, pesquisou na biblioteca pública. Percebeu que a experiência que vivera, era parecida com a narrada por aquelas pessoas que passam milimetricamente próximas da morte e são resgatadas num último segundo. O que mais o atormentava, no entanto, era o despropósito da situação: estava saudável, em boa forma física, longe de sentir sua vida ameaçada. Por via das dúvidas foi procurar um clínico geral e submeteu-se a uma bateria completa de exames. Resultados normais, recomendação apenas para que cortasse alguns excessos alimentares.


Os anos passaram rápidos e ele parou de pensar no assunto, na “experiência” como se referia ao sonho. Com o tempo confidenciou a algumas pessoas suas sensações, e além das previsíveis gozações, todos o tranqüilizaram a respeito. Pouca coisa, aliás, era capaz de assustar Hans, cuja história de vida e superações era citada por aqueles que o conheciam como exemplo a ser seguido. Filho de família de classe média estudou com muito sacrifício para poder ascender no mercado profissional. Perdeu os pais, que então descobriu serem adotivos, num acidente de avião, e isso o tornou uma pessoa ainda mais reclusa. Pouco conhecia de suas origens, nada sobre seus pais biológicos. Sabia que havia nascido no distante Brasil, país pelo qual nutria certa simpatia, mas que lhe causava medo também. Algo havia acontecido ali, algum evento do qual não era capaz de recordar, que o traumatizava. Mesmo assim, conhecia algumas coisas do país, poucas na verdade, algo relacionado à música, ao futebol.
Criado na Suíça, na região de Genebra, pensava às vezes em viajar para a America do Sul e pesquisar suas raízes primeiras, mas acabava desistindo sempre. Mariela, a bela esposa o incentivava a isso, sabendo que Hans ás vezes singrava sem rumo, tal qual nave perdida em meio à calmaria. Mulher inteligente e perspicaz, dizia ao marido: “ todos temos direito de conhecer nossa história pessoal, é algo que nos pertence.”Este pensava no assunto, mas acabava sempre protelando qualquer atitude a respeito.

Os dias daquela primavera de 1994 caminhavam esplendorosos quanto ao clima e aos negócios para Hans. Para coroar a fase tão boa, Mariela anunciou a tão sonhada gravidez em meados de abril! Ambos levitavam, mal podiam conter a justa euforia da paternidade. Foi como um sinal, prestes a ser pai, Hans decidiu conhecer mais sobre as próprias origens. Embarcaram para o Rio de Janeiro numa sexta feira, no finalzinho de abril, com esperanças e alguns vagos números de telefones.
Os contatos preliminares foram bons e o Rio era mesmo uma cidade incrível, com sua enorme quantidade de restaurantes, a beleza da natureza e o calor dos cariocas. Hans passou a sentir-se muito próximo de si mesmo, e Mariela aprovava o seu novo e “light” marido. Estavam hospedados num belo e confortável hotel em Copacabana e no sábado à noite, exageraram um pouco na bebida, caipirinha é bom e vai descendo fácil. Mesmo pelos padrões europeus, ele bebeu um pouquinho além da conta.

***
Aquele homem tem um destino, segue uma estrela, qual Rei Mago deslocado em tempo e lugar. Dono de enorme sucesso, fortuna e carisma, o que fez até agora num esporte de incríveis exigências físicas e mentais, nada vale. Quer ir além, quebrar todos os recordes, superar-se a qualquer custo. Uma luta inglória e incessante em busca de algo elusivo e reticente.
Não dormiu bem naquela noite, supersticioso ao extremo, os presságios foram claros. Como da outra vez, há muitos anos atrás, quando sofreu um gravíssimo acidente e ficou entre a vida e a morte, chegando mesmo a receber a extrema-unçao num hospital famoso de uma cidade qualquer onde o circo do esporte em que é ao mesmo tempo Rei e gladiador se exibia. Sabia que havia chegado ao perigosíssimo limiar entre a vida e a morte pela visão que teve. As luzes cintilantes, o túnel estreito, a imagem fora de foco, paisagens e rostos familiares, a regressão avassaladora o sugava para um abismo negro, chegando mesmo a ver seu corpo inerte na cama. Então algo ocorrera, e o processo todo parou: mergulhou subitamente num ponto qualquer de si mesmo, onde era incapaz de sair por suas próprias forças. Após o coma, a recuperação física foi espetacularmente rápida, deixando os médicos e os milhões de fãs em êxtase pelo mundo afora. Já a recuperação psíquica, esta ele não estava certo de que a havia concluído.
Acordava por vezes, em uma piscina de suor, com presságios, visões e muito medo. Algo o apertava no peito, por dentro, sufocando-o ao limite do desespero. Procurou ajuda espiritual, mas foi em vão. Não conseguia se abrir com ninguém, nem mesmo uma irmã particularmente querida e para quem não guardava segredos. Estava liderando uma equipe nova, com muitas expectativas, mas os resultados teimavam em decepcionar. Discutiu asperamente com seus engenheiros e técnicos à respeito do melhor acerto para seu carro para aquela pista, mas parecia falar uma linguagem desconhecida pelos demais. Queria a perfeição, ou melhor, exigia de si, para si, e dos outros um padrão sobre-humano que poucos conseguiam vislumbrar.
Místico, foi procurar uma cigana há alguns dias e ela disse algo que o intrigou demais: “Procure conhecer a sua outra metade. Espiritualmente vocês dois são um e a separação é antinatural. Busque saber mais sobre suas origens”. Aflito foi buscar respostas, mas a desconversa e os olhares trocados haviam piorado seu estado de espírito. Voltava à antiga sensação da infância e da adolescência, quando se sentia incompleto, como se faltasse algo em si. Mergulhou de cabeça no esporte para unificar seu espírito, corpo e desejo num vetor único, e havia funcionado. O desconforto havia cessado e a impressão de que lhe faltava uma metade sumira quase por completo. A visita à cigana fora uma má idéia, mas não lhe saía da cabeça.
Havia feito um bom treino e estava confiante para a corrida. Benzeu-se e entrou no carro, ignorando os aplausos dos fanáticos torcedores italianos quando alinhou no grid de largada. Adorava os fãs, mas no seu Brasil sentia-se mais aconchegado, em união com a massa de uma maneira mística e intensa. Olhou em volta e a sensação estranha voltou. Por um átimo de segundo sentiu estar fora de lugar, como se aquele não fosse o seu habitat e aquilo fosse completamente novo. Um leve enjôo, como se houvesse bebido além da conta, absurdo, claro, em vésperas de corrida. Precisava tirar umas férias e a bela loira com quem estava saindo ultimamente certamente era uma boa razão para isso. Concentrou-se na corrida e no que iria fazer nas próximas duas horas de sua vida.
O barulho infernal de milhares de cavalos de potência a rugir, presos por uma embreagem e soltos numa explosão de energia, barulho, cores e o estrondo da platéia. Chegou ponteando na primeira curva e as coisas iam bem. Livrou alguma vantagem nas primeiras voltas até a intervenção de um carro madrinha, devido a um acidente entre alguns outros rivais, muito, muito atrás de si. Tudo certo agora, o carro madrinha apaga as luzes do teto, vai entrar nos boxes, é hora de acelerar fundo e recuperar aquela vantagem enorme. A primeira curva vem chegando rápido e algo não está bem. Uma peça, das milhares que compõem a suspensão se rompe e o carro viajando a mais de trezentos quilômetros por hora, fica desgovernado, corcoveia e  choca-se violentamente contra o guard rail! O som de metais se rompendo, se fundindo, a tremenda desaceleração demora a ser assimilado por nosso cérebro.

As luzes cintilantes, o túnel estreito, a confusão de sons, cores e vozes misturadas, o deja-vu. Ao lado de uma pista de corridas, visto ao vivo e em tempo real por milhões de telespectadores ao redor do mundo, jaz o corpo quase inerte de um homem. Seus pés estão ligeiramente curvos e paramédicos ocultam seu rosto ferido das câmeras intrusas dos papparazi. Um ídolo agoniza em seus últimos momentos.
Há muitos quilômetros dali, num quarto de hotel qualquer em Copacabana, outro homem enfrenta a mesma viagem pelo túnel estreito. O filme ao contrario está rápido e não dá sinais de que será interrompido antes do final, desta vez As imagens vão se sucedendo em cascata e o homem, cada vez mais jovem, se torna um garoto franzino. Agora, algumas cenas na seqüência, o menino é um garotinho chorando ao ser retirado dos braços de uma jovem mãe, transforma-se em frações de segundos num bebê e logo num feto. O útero é escuro, confortável e úmido, mas ele não está sozinho. Há ali dentro, outro de si, disputando espaço, em harmonia, em comunhão. Um clarão de entendimento cruza as duas mentes, separadas por um oceano e uma vida.
No quarto do hotel em Copacabana, o homem abre os olhos, a boca seca, o sonho interrompido mais uma vez. Ao lado da pista, sendo colocado numa maca, o feto sorri e segura as mãos do irmão delicadamente. Solta-a. Liberta-se da matéria e suspenso, invisível, pode ver a magnitude da cena abaixo: pessoas acenando suas cabeças incrédulas com aquilo que realmente está acontecendo. Em Copacabana, o homem, ainda sonolento e confuso chama por sua Mariela, que está com os olhos grudados na tela da televisão, desconfortável a acompanhar a imolação daquele desconhecido. Do lado de fora, nas praias, nos bares, nos lares, nas ruas, um gigantesco nó se forma numa garganta coletiva. Mariela não entende bem a dimensão daquela perda, mas sente um vácuo dentro de si.
Desprende-se um pouco da energia do universo. Um ciclo está a se cumprir e outro prestes a iniciar-se.

* Quiralidade(do grego, χειρ, kheir: "mão") é uma propriedade de assimetria importante em vários ramos da ciência. propriedade que distingue uma configuração espacial de átomos da imagem especular desta configuração.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Metamorfose




Foi como um súbito despertar: naquele exato momento,  de forma abrupta e repentina, ela se deu conta de que uma mudança radical havia ocorrido entre eles. Na natureza do relacionamento, na forma como se viam mutuamente. Tudo era muito recente, e a paixão avassaladora não concedia espaço para que enxergassem defeitos um no outro.  O engraçado foi que ela estava sentada, quando aconteceu e só ao levantar-se, a idéia bateu: ele me ama! Assustadora e bela, perigosa e sedutora idéia que teimava em instalar-se em seu subconsciente. Sim, foi quando ele lhe disse que achava seu nariz (o dela) grande. E emendou, estragando mais ainda: mas eu tenho tesão em mulheres com narizes grandes, tenho até uma teoria....
Ela ficou puta da vida, inicialmente. “Como ousa?” —  nariguda o escambau.... Mas depois, mais calma e com quase uma caixa de chocolate fazendo às vezes de analgésico espiritual, percebeu que dali para frente, as coisas não seriam mais as mesmas. Paixão é paixão. Mas acaba. Ou vira amor....e aí é que começa a valer!

Cativa



Ela estava amarrada. As cordas  feriam seus braços e pernas, tudo doía, principalmente seu ego. O quarto era escuro, mas seus olhos já haviam se acostumado com a penumbra e assim, podia ver ao seu redor. Olhares  de medo, assustada e acuada. Sempre que seu captor se aproximava, podia sentir sua presença, por menos ruído que ele fizesse. Algo sinistro vibrava em sua espinha, e depois, havia aquele nauseante cheiro agridoce que costuma impregnar pessoas más. Ao forçar as cordas que prendiam os pulsos, feriu-se e sangrou. Os soluços secos e as lágrimas idem, chamaram a atenção de seu  algoz, que contrariado, aproximou-se com um pano úmido. Pôde então, pela primeira vez olhar seus olhos, por detrás da máscara. Eram olhos doces, quase ternos. Isso inquietou seu coração cativo e lhe trouxe ainda mais dissabores. O conflito era pior que a dilaceração física. Lembrou-se, então, da tal Síndrome de Estocolmo, e achou que estava enlouquecendo. Mas o pior estava por vir....O cheiro agridoce começou a ser tão necessário em sua mísera rotina quanto o ar que respirava. E o pior....

Devaneios pós modernos


Era como se fosse um sonho, mas era mais. Venho caminhando lentamente e com a cabeça baixa. A minha frente, me esperando, o mais severo tribunal de todos os que já enfrentei. Composto de meus filhos, eles são os jurados e os juízes. Vejo também as difusas silhuetas de seus futuros filhos, meus netos que jamais conhecerei e ainda menos nitidamente os filhos destes, minha descendência. Me dou conta do peso e da responsabilidade que negligenciei. A mochila abstrata onde carrego minhas culpas (acessório de minha vã consciência) é colocada sobre uma mesa. Imaginária e pesada. Paradoxalmente, ao deixá-la cair, não sinto o alívio do peso. Sinto, ao contrário, a severidade dos muitos olhares cravados em mim. Penso, tento, quero refazer meus passos incertos. Sei que se tivesse uma chance, pisaria mas firme e andaria com menos hesitação. Fui presa fácil das tentações, dos vícios, das armadilhas que nos aguardam a cada curva de estrada. Respiro fundo e o ar vem quente, queimando levemente minhas narinas, envenenando meus pulmões. Nivelo meu olhar, mas rapidamente recuo ante a multidão de olhos acusando-me surdamente. Não há sons e nem palavras, são desnecessárias. Mentalmente procuro achar uma saída, mas meu corpo está preso ao chão. Mais silhuetas vagas e difusas vão se aproximando silenciosamente se juntando às primeiras. Gerações de mim se sucedem cada qual tentando aliviar-me do peso de ser quem sou ou fui. Eu me sinto cada vez mais pesado...

terça-feira, 22 de maio de 2012

Coisa antiga. Escrita em Londres, por volta de 1982.


Caminho sozinho na noite fria,
volto para casa.
O vento furioso me alcança,
me rodeia, me fustiga, me fere,
mas não me atinge!

Sou insensível a sensações.
Breves lapsos além da realidade,
são meu tormento.
Mergulho num mar de mim mesmo,
em vão...

Procuro encontrar aquela elusiva
faceta do meu eu,
que sei ser justa e real.
Deparo-me com imagens sobrepostas,
confusas, temerosas.

Vagueio em círculos constantemente.
Cores berrantes, surreais me
cobrem as retinas...
Tento desesperadamente nivelar
meus pensamentos.

Gostaria de gritar em desespero
para que o infinito
me  ouvisse e me contestasse.
Mudo, permaneço em protesto.

Em partículas de tempo,
me decomponho em mínimas
células.
Difusas, independentes, contraditórias.
Sou milhões de átomos nervosos
em atrito, em comunhão.

Réstias de luz se filtram pelos
espaços, criando sombras.
Projetam-se ângulos no infinito
de proporções misteriosas.

Desdobram-se as projeções de
imagens de mim.
Bombardeio todos os cantos
com reflexos consequentes.

                    Deliro,
Deliro mais e mais.
Já não sou matéria.

Parti e me torno ilusão,
Sensação, saudade.