quinta-feira, 31 de maio de 2012

VASO RUIM QUEBRA SIM



Vaso ruim quebra sim


Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Jeremias deu de si no topo da cômoda do quarto, transformado num grande vaso. Aquilo era deveras incômodo e ele tentou beliscar-se, para despertar de um sonho – ou pesadelo – mas vasos não têm braços, e aquele em particular era feito de argila e só tinha duas pequenas argolinhas perto do topo. Que maçada!  O interessante é que apesar de não ter olhos propriamente ditos, podia ver tudo em sua volta num ângulo de trezentos e sessenta graus. Começou lentamente, ainda em choque, a perscrutar o ambiente que o cercava. Estranhou inicialmente o tipo de mobília, bastante escassa, feita de madeira rústica e grossa, as paredes de pedras nuas, o teto baixo e o catre, sim, aquilo não era uma cama, feito de madeira e com tiras de couros a fazer as vezes de estrado, sem colchão, lençóis, nada.
Jeremias, apesar de vaso, podia pensar nítidamente, e aterrorizado por sua temporária (ele esperava) forma física, passou a tentar achar soluções para reverter-se ao que era antes. Jurou a si mesmo jamais voltar a reclamar de sua forma humana um tanto quanto rotunda – excessos de cervejas e frituras, associados ás promessas nunca cumpridas de uma dieta e matricular-se numa academia- e estranhamente sentiu falta de seus dedos dos pés. Nem gostava tanto assim deles, tinha pés chatos e o dedão do pé direito na realidade tinha uma unha eternamente encravada, mas decidiu que preferia mil vezes suas unhas manchadas, sua papada protuberante, sua pança deselegante, seus joelhos tortos que ser um simétrico vaso de barro!
Que me aconteceu? – pensou. Não tinha idéia e nem recordações da noite anterior, de como fora parar ali, às vezes bebia um pouco demais da conta, mas não era o caso da noite anterior. Lembrava-se perfeitamente ter se recolhido a seu quarto mais cedo que de costume, tinha uma leve indisposição estomacal, rodízio de sexta-feira sempre o fazia abusar um pouco das carnes mais gordas, e até havia cancelado uma festinha de aniversário de criança no prédio, ao pensar nos gordurentos salgadinhos.
Fazendo uso de suas recém-adquiridas habilidades de enxergar em volta, percebeu não estar no habitual sétimo andar de seu apartamento, onde vivia modestamente com sua mãe viúva e o gato Max, e sim no nível do chão. Estranhou também o sol forte do lado de fora, pela época do ano, estavam em estação de chuvas, e sol brilhante feito este não via há semanas.
Subitamente ouviu vozes vindas do lado de fora e pensou que a situação seria esclarecida de uma maneira ou de outra. Dois tipos estranhos, vestidos para alguma festa à fantasia ou baile de carnaval, tal qual tribunos romanos, adentraram o quarto e aparentemente não o notaram. Falavam em voz alta, num idioma grosseiro cheio de altas entonações anasaladas, mas estranhamente, Jeremias entendia cada palavra do que diziam! Esta era a segunda maior surpresa do dia, e estava acordado há apenas poucos minutos, nem imaginava ainda o que estava por vir!
Estavam confabulando os dois! Esperavam uma terceira pessoa e tratavam-se de maneira cerimoniosa e íntima ao mesmo tempo. O primeiro, que logo Jeremias percebeu chamar-se Cássio, tentava convencer o outro, Casca, a aderir a um plano qualquer e a palavra “eliminar” – seja qual a língua que falavam – era pronunciada de uma maneira solene e definitiva. Pensou ouvir o nome Cesar e também começou a fazer idéia do que se tratava, pois a única peça que tinha assistido no teatro da escola, há anos e anos atrás, foi justamente “Julio Cesar” de Shakespeare. Na época não a entendeu completamente, apaixonado que estava por Glorinha Madalena, a gordinha (fofinha?) mais sexy de toda a escola, recatada, evangélica e, descobriu-se depois, rodriguianamente devassa. Por Glorinha tinha ido ver a peça e por Glorinha, perdeu boa parte da trama, impregnado de suas madeixas negras, sua nuca redondinha e branquinha bem na fila da frente.
Ok, mas meus problemas imediatos são de maior monta pensou o vaso, digo, Jeremias. Preciso escapar desse pesadelo, será que colocaram algo em minha cerveja?- o pessoal da repartição é dado a essas palhaçadas, mas nem havia bebido tanto assim!
Enquanto pensava com seus ausentes botões, os dois continuavam a confabular e a tramar e um barulho de fora foi a deixa de que havia uma terceira pessoa prestes a adentrar o quarto. De fato, outro tipo atarracado em fantasia, digo, roupas de romano, chegou e após os beijos na face de costume, entreolharam-se e começaram a tramar. Pobre Cesar pensou Jeremias, com a vantagem de saber como terminaria a história e a desvantagem de estar vaso e não poder fazer nada para impedir, preocupação, aliás, que não tinha, sua maior vontade era voltar para ontem e despertar.
De repente, ouve uma garganta raspando, saliva sendo negociada entre o esôfago e a garganta, outra profunda arranhada nasal e záz-traz: o maldito Casca acaba de cuspir nele! Dentro dele! Era isso então, ele não era um vaso, mas sim um tipo de escarradeira, nojento demais! Se tivesse estômago, teria vomitado ali mesmo, mas percebeu que sendo vaso e, portanto, não tendo entranhas, podia ter suas vantagens, afinal. Era oco, mas não totalmente desprovido de sentimentos, quando a segunda cuspida veio sibilante em sua direção, e a pontaria do maldito Cássio era muito pior que a de Casca, um filetinho de saliva ficou pendurado numa de suas bordas. - Meu reino por um cavalo, havia dito Napoleão, minha vida por uma espada e mostro a estes energúmenos em quem vão cuspir, porcos! Uma espada para um vaso? Pouca utilidade, realmente.
Os confabulantes continuavam a falar em sua maneira empoada e enrolada, as palavras iam e vinham dando voltas e volteios, em círculos hesitantes e ele sabia perfeitamente onde estes porcalhões estavam querendo chegar. O que não lhe importava muito, pois agora começava a bater um desespero ao ter ciência de sua situação atual: era um vaso, ou pior, uma escarradeira romana, escondido numa frestinha qualquer do tempo, perdido na história poeirenta tal qual um objeto de cena, pouco importante numa peça de teatro decadente.
As palavras ditas em ritmo cadenciado, mais os círculos que os três conspiradores faziam ao caminhar em volta de um eixo imaginário no quarto, foram dando sono ao nosso Jeremias que, sem perceber, acabou cochilando. Lentamente as palavras foram cedendo e perdendo ritmo e nexo. No sonho do vaso, este se imaginou um herói. Sim, um vaso herói! Com direito a escravos, amantes, uma biga veloz – vermelho Ferrari, quiçá – e todos lhe saudando à passagem: Hail Cesar Jeremias! Sonhos são sonhos, oras. De alguma maneira ele conseguia frustar a tentativa de assassinato do grande imperador, trocando a adaga de Brutus por uma dessas de cenário de filmes, sem cortes. Os conspiradores eram presos, julgados e jogados aos leões na Arena. O vaso, coberto de glórias, limpo e jamais escarrado novamente, alçado à condição de nobre, havia mudado o curso da historia!
Mas o destino não quis assim! Cruel destino que assombra e atrapalha trajetórias humanas, cheias de vontades egos e orgulhos, quem dirá de um simples vasinho/escarradeira de barro, sem grife. Jeremias acordou ainda vaso. Soltou um suspiro profundo, que não foi notado por ninguém, pois os tribunos haviam partido. O sol já se punha lá fora e as sombras da noite aproximavam-se velozmente do pequeno quarto. O silêncio era quase total e inquietante. Quase, porque se podia ouvir o zunido de cigarras do lado de fora, em seu incessante lamento cadenciado. A noite caiu por completo. Jeremias ouviu passos apressados. Algum desastrado havia esquecido sua espada sobre a cômoda, justamente atrás de Jeremias. Uma tocha adentrou o quarto, equilibrando-se precariamente numa mão grossa, e tão célere quanto entrou, caiu ao chão. A mão tateou a cômoda e esbarrou em Jeremias, o pobre, que desequilibrado, estatelou-se no chão duro, bem ao lado da tocha, partindo-se em mil pedaços.


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