Vaso ruim quebra sim
Numa manhã, ao despertar de
sonhos inquietantes, Jeremias deu de si no topo da cômoda do quarto,
transformado num grande vaso. Aquilo era deveras incômodo e ele tentou
beliscar-se, para despertar de um sonho – ou pesadelo – mas vasos não têm
braços, e aquele em particular era feito de argila e só tinha duas pequenas
argolinhas perto do topo. Que maçada! O
interessante é que apesar de não ter olhos propriamente ditos, podia ver tudo
em sua volta num ângulo de trezentos e sessenta graus. Começou lentamente,
ainda em choque, a perscrutar o ambiente que o cercava. Estranhou inicialmente
o tipo de mobília, bastante escassa, feita de madeira rústica e grossa, as
paredes de pedras nuas, o teto baixo e o catre, sim, aquilo não era uma cama, feito
de madeira e com tiras de couros a fazer as vezes de estrado, sem colchão,
lençóis, nada.
Jeremias, apesar de vaso, podia
pensar nítidamente, e aterrorizado por sua temporária (ele esperava) forma
física, passou a tentar achar soluções para reverter-se ao que era antes. Jurou
a si mesmo jamais voltar a reclamar de sua forma humana um tanto quanto rotunda
– excessos de cervejas e frituras, associados ás promessas nunca cumpridas de
uma dieta e matricular-se numa academia- e estranhamente sentiu falta de seus
dedos dos pés. Nem gostava tanto assim deles, tinha pés chatos e o dedão do pé
direito na realidade tinha uma unha eternamente encravada, mas decidiu que
preferia mil vezes suas unhas manchadas, sua papada protuberante, sua pança
deselegante, seus joelhos tortos que ser um simétrico vaso de barro!
Que me aconteceu? – pensou. Não
tinha idéia e nem recordações da noite anterior, de como fora parar ali, às
vezes bebia um pouco demais da conta, mas não era o caso da noite anterior.
Lembrava-se perfeitamente ter se recolhido a seu quarto mais cedo que de
costume, tinha uma leve indisposição estomacal, rodízio de sexta-feira sempre o
fazia abusar um pouco das carnes mais gordas, e até havia cancelado uma
festinha de aniversário de criança no prédio, ao pensar nos gordurentos
salgadinhos.
Fazendo uso de suas
recém-adquiridas habilidades de enxergar em volta, percebeu não estar no
habitual sétimo andar de seu apartamento, onde vivia modestamente com sua mãe
viúva e o gato Max, e sim no nível do chão. Estranhou também o sol forte do
lado de fora, pela época do ano, estavam em estação de chuvas, e sol brilhante
feito este não via há semanas.
Subitamente ouviu vozes vindas do
lado de fora e pensou que a situação seria esclarecida de uma maneira ou de
outra. Dois tipos estranhos, vestidos para alguma festa à fantasia ou baile de
carnaval, tal qual tribunos romanos, adentraram o quarto e aparentemente não o
notaram. Falavam em voz alta, num idioma grosseiro cheio de altas entonações
anasaladas, mas estranhamente, Jeremias entendia cada palavra do que diziam!
Esta era a segunda maior surpresa do dia, e estava acordado há apenas poucos
minutos, nem imaginava ainda o que estava por vir!
Estavam confabulando os dois!
Esperavam uma terceira pessoa e tratavam-se de maneira cerimoniosa e íntima ao
mesmo tempo. O primeiro, que logo Jeremias percebeu chamar-se Cássio, tentava
convencer o outro, Casca, a aderir a um plano qualquer e a palavra “eliminar” –
seja qual a língua que falavam – era pronunciada de uma maneira solene e definitiva.
Pensou ouvir o nome Cesar e também começou a fazer idéia do que se tratava,
pois a única peça que tinha assistido no teatro da escola, há anos e anos
atrás, foi justamente “Julio Cesar” de Shakespeare. Na época não a entendeu
completamente, apaixonado que estava por Glorinha Madalena, a gordinha
(fofinha?) mais sexy de toda a escola, recatada, evangélica e, descobriu-se
depois, rodriguianamente devassa. Por Glorinha tinha ido ver a peça e por
Glorinha, perdeu boa parte da trama, impregnado de suas madeixas negras, sua
nuca redondinha e branquinha bem na fila da frente.
Ok, mas meus problemas imediatos
são de maior monta pensou o vaso, digo, Jeremias. Preciso escapar desse
pesadelo, será que colocaram algo em minha cerveja?- o pessoal da repartição é
dado a essas palhaçadas, mas nem havia bebido tanto assim!
Enquanto pensava com seus
ausentes botões, os dois continuavam a confabular e a tramar e um barulho de
fora foi a deixa de que havia uma terceira pessoa prestes a adentrar o quarto.
De fato, outro tipo atarracado em fantasia, digo, roupas de romano, chegou e
após os beijos na face de costume, entreolharam-se e começaram a tramar. Pobre
Cesar pensou Jeremias, com a vantagem de saber como terminaria a história e a
desvantagem de estar vaso e não poder fazer nada para impedir, preocupação,
aliás, que não tinha, sua maior vontade era voltar para ontem e despertar.
De repente, ouve uma garganta
raspando, saliva sendo negociada entre o esôfago e a garganta, outra profunda
arranhada nasal e záz-traz: o maldito Casca acaba de cuspir nele! Dentro dele!
Era isso então, ele não era um vaso, mas sim um tipo de escarradeira, nojento
demais! Se tivesse estômago, teria vomitado ali mesmo, mas percebeu que sendo
vaso e, portanto, não tendo entranhas, podia ter suas vantagens, afinal. Era
oco, mas não totalmente desprovido de sentimentos, quando a segunda cuspida
veio sibilante em sua direção, e a pontaria do maldito Cássio era muito pior
que a de Casca, um filetinho de saliva ficou pendurado numa de suas bordas. - Meu
reino por um cavalo, havia dito Napoleão, minha vida por uma espada e mostro a
estes energúmenos em quem vão cuspir, porcos! Uma espada para um vaso? Pouca
utilidade, realmente.
Os confabulantes continuavam a
falar em sua maneira empoada e enrolada, as palavras iam e vinham dando voltas
e volteios, em círculos hesitantes e ele sabia perfeitamente onde estes
porcalhões estavam querendo chegar. O que não lhe importava muito, pois agora
começava a bater um desespero ao ter ciência de sua situação atual: era um
vaso, ou pior, uma escarradeira romana, escondido numa frestinha qualquer do
tempo, perdido na história poeirenta tal qual um objeto de cena, pouco
importante numa peça de teatro decadente.
As palavras ditas em ritmo
cadenciado, mais os círculos que os três conspiradores faziam ao caminhar em
volta de um eixo imaginário no quarto, foram dando sono ao nosso Jeremias que,
sem perceber, acabou cochilando. Lentamente as palavras foram cedendo e
perdendo ritmo e nexo. No sonho do vaso, este se imaginou um herói. Sim, um
vaso herói! Com direito a escravos, amantes, uma biga veloz – vermelho Ferrari,
quiçá – e todos lhe saudando à passagem: Hail Cesar Jeremias! Sonhos são
sonhos, oras. De alguma maneira ele conseguia frustar a tentativa de
assassinato do grande imperador, trocando a adaga de Brutus por uma dessas de
cenário de filmes, sem cortes. Os conspiradores eram presos, julgados e jogados
aos leões na Arena. O vaso, coberto de glórias, limpo e jamais escarrado
novamente, alçado à condição de nobre, havia mudado o curso da historia!
Mas o destino
não quis assim! Cruel destino que assombra e atrapalha trajetórias humanas,
cheias de vontades egos e orgulhos, quem dirá de um simples vasinho/escarradeira
de barro, sem grife. Jeremias acordou ainda vaso. Soltou um suspiro profundo,
que não foi notado por ninguém, pois os tribunos haviam partido. O sol já se
punha lá fora e as sombras da noite aproximavam-se velozmente do pequeno
quarto. O silêncio era quase total e inquietante. Quase, porque se podia ouvir
o zunido de cigarras do lado de fora, em seu incessante lamento cadenciado. A
noite caiu por completo. Jeremias ouviu passos apressados. Algum desastrado
havia esquecido sua espada sobre a cômoda, justamente atrás de Jeremias. Uma
tocha adentrou o quarto, equilibrando-se precariamente numa mão grossa, e tão
célere quanto entrou, caiu ao chão. A mão tateou a cômoda e esbarrou em
Jeremias, o pobre, que desequilibrado, estatelou-se no chão duro, bem ao lado
da tocha, partindo-se em mil pedaços.
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