quarta-feira, 30 de maio de 2012

QUIRALIDADE




Quiralidade*

Pequena alma terna flutuante
Hóspede e companheira de meu corpo,
Vais descer aos lugares pálidos duros nus
Onde deverás renunciar aos jogos de outrora....
                                                                          P. Élio Adriano, Imp.

Então é assim! Luzes cintilantes, piscando intermitentemente. O momento final, os clarões, o túnel estreito, o aperto no peito. A sensação de ir escorregando devagar de costas, o frio na barriga. Muitas imagens sobrepostas, um neon louco de visões. Nada de som, um filme mudo e colorido. E correndo velozmente para trás! Retrocedendo no tempo, rostos, lugares, num frenesi doido. Aqui e ali uma lembrança mais marcante. Mas espera! Quem são essas pessoas? São estranhos e ao mesmo tempo, parecem familiares. Fragmentos que escapam, pedaços desconexos de um quebra-cabeças.
A montanha russa invertida continua cada vez mais rápida. Pode ver as pessoas sorrindo ou sérias, algumas circunspectas, sons tímidos chegam fora de sincronia, atrasados como numa transmissão de televisão defeituosa, um satélite antigo.
Os olhos semicerrados efetuam movimentos circulares rapidíssimos, como a antecipar avidamente o próximo rosto, o odor seguinte, sim, agora as lembranças vêm em cascatas e com cores, cheiros e sons. Difícil parar aquela sensação de queda no abismo. Nivelar os pensamentos, turbilhões de sensações sobrepostas, contraditórias, em golfadas. Apesar da velocidade crescente das memórias que o impedem de raciocinar com clareza, tem uma certeza: está morrendo e este é o seu derradeiro momento. Exatamente como diziam os antigos, a sensação de levitar, de deixar o corpo suspenso no espaço, sem forma física, desprender-se da matéria, na hesitação natural da partida.

A boca seca, as dores no corpo, a letargia. Argh! Abriu devagar os olhos, teve vontade de beliscar-se. Sentiu júbilo por saber que havia sido um pesadelo, um sonho péssimo, mas apenas um sonho, afinal. Decidiu não falar sobre isso a ninguém, nem mesmo a esposa. A sensação quase-física de um sonho pesado, mais do que um pesadelo comum o atormentou o dia todo. Passou a ler bastante sobre o assunto, consultou amigos espíritas, pesquisou na biblioteca pública. Percebeu que a experiência que vivera, era parecida com a narrada por aquelas pessoas que passam milimetricamente próximas da morte e são resgatadas num último segundo. O que mais o atormentava, no entanto, era o despropósito da situação: estava saudável, em boa forma física, longe de sentir sua vida ameaçada. Por via das dúvidas foi procurar um clínico geral e submeteu-se a uma bateria completa de exames. Resultados normais, recomendação apenas para que cortasse alguns excessos alimentares.


Os anos passaram rápidos e ele parou de pensar no assunto, na “experiência” como se referia ao sonho. Com o tempo confidenciou a algumas pessoas suas sensações, e além das previsíveis gozações, todos o tranqüilizaram a respeito. Pouca coisa, aliás, era capaz de assustar Hans, cuja história de vida e superações era citada por aqueles que o conheciam como exemplo a ser seguido. Filho de família de classe média estudou com muito sacrifício para poder ascender no mercado profissional. Perdeu os pais, que então descobriu serem adotivos, num acidente de avião, e isso o tornou uma pessoa ainda mais reclusa. Pouco conhecia de suas origens, nada sobre seus pais biológicos. Sabia que havia nascido no distante Brasil, país pelo qual nutria certa simpatia, mas que lhe causava medo também. Algo havia acontecido ali, algum evento do qual não era capaz de recordar, que o traumatizava. Mesmo assim, conhecia algumas coisas do país, poucas na verdade, algo relacionado à música, ao futebol.
Criado na Suíça, na região de Genebra, pensava às vezes em viajar para a America do Sul e pesquisar suas raízes primeiras, mas acabava desistindo sempre. Mariela, a bela esposa o incentivava a isso, sabendo que Hans ás vezes singrava sem rumo, tal qual nave perdida em meio à calmaria. Mulher inteligente e perspicaz, dizia ao marido: “ todos temos direito de conhecer nossa história pessoal, é algo que nos pertence.”Este pensava no assunto, mas acabava sempre protelando qualquer atitude a respeito.

Os dias daquela primavera de 1994 caminhavam esplendorosos quanto ao clima e aos negócios para Hans. Para coroar a fase tão boa, Mariela anunciou a tão sonhada gravidez em meados de abril! Ambos levitavam, mal podiam conter a justa euforia da paternidade. Foi como um sinal, prestes a ser pai, Hans decidiu conhecer mais sobre as próprias origens. Embarcaram para o Rio de Janeiro numa sexta feira, no finalzinho de abril, com esperanças e alguns vagos números de telefones.
Os contatos preliminares foram bons e o Rio era mesmo uma cidade incrível, com sua enorme quantidade de restaurantes, a beleza da natureza e o calor dos cariocas. Hans passou a sentir-se muito próximo de si mesmo, e Mariela aprovava o seu novo e “light” marido. Estavam hospedados num belo e confortável hotel em Copacabana e no sábado à noite, exageraram um pouco na bebida, caipirinha é bom e vai descendo fácil. Mesmo pelos padrões europeus, ele bebeu um pouquinho além da conta.

***
Aquele homem tem um destino, segue uma estrela, qual Rei Mago deslocado em tempo e lugar. Dono de enorme sucesso, fortuna e carisma, o que fez até agora num esporte de incríveis exigências físicas e mentais, nada vale. Quer ir além, quebrar todos os recordes, superar-se a qualquer custo. Uma luta inglória e incessante em busca de algo elusivo e reticente.
Não dormiu bem naquela noite, supersticioso ao extremo, os presságios foram claros. Como da outra vez, há muitos anos atrás, quando sofreu um gravíssimo acidente e ficou entre a vida e a morte, chegando mesmo a receber a extrema-unçao num hospital famoso de uma cidade qualquer onde o circo do esporte em que é ao mesmo tempo Rei e gladiador se exibia. Sabia que havia chegado ao perigosíssimo limiar entre a vida e a morte pela visão que teve. As luzes cintilantes, o túnel estreito, a imagem fora de foco, paisagens e rostos familiares, a regressão avassaladora o sugava para um abismo negro, chegando mesmo a ver seu corpo inerte na cama. Então algo ocorrera, e o processo todo parou: mergulhou subitamente num ponto qualquer de si mesmo, onde era incapaz de sair por suas próprias forças. Após o coma, a recuperação física foi espetacularmente rápida, deixando os médicos e os milhões de fãs em êxtase pelo mundo afora. Já a recuperação psíquica, esta ele não estava certo de que a havia concluído.
Acordava por vezes, em uma piscina de suor, com presságios, visões e muito medo. Algo o apertava no peito, por dentro, sufocando-o ao limite do desespero. Procurou ajuda espiritual, mas foi em vão. Não conseguia se abrir com ninguém, nem mesmo uma irmã particularmente querida e para quem não guardava segredos. Estava liderando uma equipe nova, com muitas expectativas, mas os resultados teimavam em decepcionar. Discutiu asperamente com seus engenheiros e técnicos à respeito do melhor acerto para seu carro para aquela pista, mas parecia falar uma linguagem desconhecida pelos demais. Queria a perfeição, ou melhor, exigia de si, para si, e dos outros um padrão sobre-humano que poucos conseguiam vislumbrar.
Místico, foi procurar uma cigana há alguns dias e ela disse algo que o intrigou demais: “Procure conhecer a sua outra metade. Espiritualmente vocês dois são um e a separação é antinatural. Busque saber mais sobre suas origens”. Aflito foi buscar respostas, mas a desconversa e os olhares trocados haviam piorado seu estado de espírito. Voltava à antiga sensação da infância e da adolescência, quando se sentia incompleto, como se faltasse algo em si. Mergulhou de cabeça no esporte para unificar seu espírito, corpo e desejo num vetor único, e havia funcionado. O desconforto havia cessado e a impressão de que lhe faltava uma metade sumira quase por completo. A visita à cigana fora uma má idéia, mas não lhe saía da cabeça.
Havia feito um bom treino e estava confiante para a corrida. Benzeu-se e entrou no carro, ignorando os aplausos dos fanáticos torcedores italianos quando alinhou no grid de largada. Adorava os fãs, mas no seu Brasil sentia-se mais aconchegado, em união com a massa de uma maneira mística e intensa. Olhou em volta e a sensação estranha voltou. Por um átimo de segundo sentiu estar fora de lugar, como se aquele não fosse o seu habitat e aquilo fosse completamente novo. Um leve enjôo, como se houvesse bebido além da conta, absurdo, claro, em vésperas de corrida. Precisava tirar umas férias e a bela loira com quem estava saindo ultimamente certamente era uma boa razão para isso. Concentrou-se na corrida e no que iria fazer nas próximas duas horas de sua vida.
O barulho infernal de milhares de cavalos de potência a rugir, presos por uma embreagem e soltos numa explosão de energia, barulho, cores e o estrondo da platéia. Chegou ponteando na primeira curva e as coisas iam bem. Livrou alguma vantagem nas primeiras voltas até a intervenção de um carro madrinha, devido a um acidente entre alguns outros rivais, muito, muito atrás de si. Tudo certo agora, o carro madrinha apaga as luzes do teto, vai entrar nos boxes, é hora de acelerar fundo e recuperar aquela vantagem enorme. A primeira curva vem chegando rápido e algo não está bem. Uma peça, das milhares que compõem a suspensão se rompe e o carro viajando a mais de trezentos quilômetros por hora, fica desgovernado, corcoveia e  choca-se violentamente contra o guard rail! O som de metais se rompendo, se fundindo, a tremenda desaceleração demora a ser assimilado por nosso cérebro.

As luzes cintilantes, o túnel estreito, a confusão de sons, cores e vozes misturadas, o deja-vu. Ao lado de uma pista de corridas, visto ao vivo e em tempo real por milhões de telespectadores ao redor do mundo, jaz o corpo quase inerte de um homem. Seus pés estão ligeiramente curvos e paramédicos ocultam seu rosto ferido das câmeras intrusas dos papparazi. Um ídolo agoniza em seus últimos momentos.
Há muitos quilômetros dali, num quarto de hotel qualquer em Copacabana, outro homem enfrenta a mesma viagem pelo túnel estreito. O filme ao contrario está rápido e não dá sinais de que será interrompido antes do final, desta vez As imagens vão se sucedendo em cascata e o homem, cada vez mais jovem, se torna um garoto franzino. Agora, algumas cenas na seqüência, o menino é um garotinho chorando ao ser retirado dos braços de uma jovem mãe, transforma-se em frações de segundos num bebê e logo num feto. O útero é escuro, confortável e úmido, mas ele não está sozinho. Há ali dentro, outro de si, disputando espaço, em harmonia, em comunhão. Um clarão de entendimento cruza as duas mentes, separadas por um oceano e uma vida.
No quarto do hotel em Copacabana, o homem abre os olhos, a boca seca, o sonho interrompido mais uma vez. Ao lado da pista, sendo colocado numa maca, o feto sorri e segura as mãos do irmão delicadamente. Solta-a. Liberta-se da matéria e suspenso, invisível, pode ver a magnitude da cena abaixo: pessoas acenando suas cabeças incrédulas com aquilo que realmente está acontecendo. Em Copacabana, o homem, ainda sonolento e confuso chama por sua Mariela, que está com os olhos grudados na tela da televisão, desconfortável a acompanhar a imolação daquele desconhecido. Do lado de fora, nas praias, nos bares, nos lares, nas ruas, um gigantesco nó se forma numa garganta coletiva. Mariela não entende bem a dimensão daquela perda, mas sente um vácuo dentro de si.
Desprende-se um pouco da energia do universo. Um ciclo está a se cumprir e outro prestes a iniciar-se.

* Quiralidade(do grego, χειρ, kheir: "mão") é uma propriedade de assimetria importante em vários ramos da ciência. propriedade que distingue uma configuração espacial de átomos da imagem especular desta configuração.

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