Quiralidade*
Pequena alma terna
flutuante
Hóspede e companheira
de meu corpo,
Vais descer aos
lugares pálidos duros nus
Onde deverás renunciar
aos jogos de outrora....
P. Élio Adriano, Imp.
Então é
assim! Luzes cintilantes, piscando intermitentemente. O momento final, os
clarões, o túnel estreito, o aperto no peito. A sensação de ir escorregando
devagar de costas, o frio na barriga. Muitas imagens sobrepostas, um neon louco
de visões. Nada de som, um filme mudo e colorido. E correndo velozmente para
trás! Retrocedendo no tempo, rostos, lugares, num frenesi doido. Aqui e ali uma
lembrança mais marcante. Mas espera! Quem são essas pessoas? São estranhos e ao
mesmo tempo, parecem familiares. Fragmentos que escapam, pedaços desconexos de
um quebra-cabeças.
A montanha
russa invertida continua cada vez mais rápida. Pode ver as pessoas sorrindo ou
sérias, algumas circunspectas, sons tímidos chegam fora de sincronia, atrasados
como numa transmissão de televisão defeituosa, um satélite antigo.
Os olhos
semicerrados efetuam movimentos circulares rapidíssimos, como a antecipar
avidamente o próximo rosto, o odor seguinte, sim, agora as lembranças vêm em
cascatas e com cores, cheiros e sons. Difícil parar aquela sensação de queda no
abismo. Nivelar os pensamentos, turbilhões de sensações sobrepostas,
contraditórias, em
golfadas. Apesar da velocidade crescente das memórias que o
impedem de raciocinar com clareza, tem uma certeza: está morrendo e este é o
seu derradeiro momento. Exatamente como diziam os antigos, a sensação de
levitar, de deixar o corpo suspenso no espaço, sem forma física, desprender-se
da matéria, na hesitação natural da partida.
A boca seca,
as dores no corpo, a letargia. Argh! Abriu devagar os olhos, teve vontade de
beliscar-se. Sentiu júbilo por saber que havia sido um pesadelo, um sonho
péssimo, mas apenas um sonho, afinal. Decidiu não falar sobre isso a ninguém,
nem mesmo a esposa. A sensação quase-física de um sonho pesado, mais do que um
pesadelo comum o atormentou o dia todo. Passou a ler bastante sobre o assunto,
consultou amigos espíritas, pesquisou na biblioteca pública. Percebeu que a
experiência que vivera, era parecida com a narrada por aquelas pessoas que
passam milimetricamente próximas da morte e são resgatadas num último segundo.
O que mais o atormentava, no entanto, era o despropósito da situação: estava
saudável, em boa forma física, longe de sentir sua vida ameaçada. Por via das
dúvidas foi procurar um clínico geral e submeteu-se a uma bateria completa de
exames. Resultados normais, recomendação apenas para que cortasse alguns
excessos alimentares.
Os anos
passaram rápidos e ele parou de pensar no assunto, na “experiência” como se
referia ao sonho. Com o tempo confidenciou a algumas pessoas suas sensações, e
além das previsíveis gozações, todos o tranqüilizaram a respeito. Pouca coisa,
aliás, era capaz de assustar Hans, cuja história de vida e superações era
citada por aqueles que o conheciam como exemplo a ser seguido. Filho de família
de classe média estudou com muito sacrifício para poder ascender no mercado
profissional. Perdeu os pais, que então descobriu serem adotivos, num acidente
de avião, e isso o tornou uma pessoa ainda mais reclusa. Pouco conhecia de suas
origens, nada sobre seus pais biológicos. Sabia que havia nascido no distante
Brasil, país pelo qual nutria certa simpatia, mas que lhe causava medo também.
Algo havia acontecido ali, algum evento do qual não era capaz de recordar, que
o traumatizava. Mesmo assim, conhecia algumas coisas do país, poucas na
verdade, algo relacionado à música, ao futebol.
Criado na
Suíça, na região de Genebra, pensava às vezes em viajar para a America do Sul e
pesquisar suas raízes primeiras, mas acabava desistindo sempre. Mariela, a bela
esposa o incentivava a isso, sabendo que Hans ás vezes singrava sem rumo, tal
qual nave perdida em meio à calmaria. Mulher inteligente e perspicaz, dizia ao
marido: “ todos temos direito de conhecer nossa história pessoal, é algo que
nos pertence.”Este pensava no assunto, mas acabava sempre protelando qualquer
atitude a respeito.
Os dias
daquela primavera de 1994 caminhavam esplendorosos quanto ao clima e aos
negócios para Hans. Para coroar a fase tão boa, Mariela anunciou a tão sonhada
gravidez em meados de abril! Ambos levitavam, mal podiam conter a justa euforia
da paternidade. Foi como um sinal, prestes a ser pai, Hans decidiu conhecer
mais sobre as próprias origens. Embarcaram para o Rio de Janeiro numa sexta
feira, no finalzinho de abril, com esperanças e alguns vagos números de
telefones.
Os contatos
preliminares foram bons e o Rio era mesmo uma cidade incrível, com sua enorme
quantidade de restaurantes, a beleza da natureza e o calor dos cariocas. Hans
passou a sentir-se muito próximo de si mesmo, e Mariela aprovava o seu novo e
“light” marido. Estavam hospedados num belo e confortável hotel em Copacabana e
no sábado à noite, exageraram um pouco na bebida, caipirinha é bom e vai
descendo fácil. Mesmo pelos padrões europeus, ele bebeu um pouquinho além da
conta.
***
Aquele homem
tem um destino, segue uma estrela, qual Rei Mago deslocado em tempo e lugar.
Dono de enorme sucesso, fortuna e carisma, o que fez até agora num esporte de
incríveis exigências físicas e mentais, nada vale. Quer ir além, quebrar todos
os recordes, superar-se a qualquer custo. Uma luta inglória e incessante em
busca de algo elusivo e reticente.
Não dormiu
bem naquela noite, supersticioso ao extremo, os presságios foram claros. Como
da outra vez, há muitos anos atrás, quando sofreu um gravíssimo acidente e
ficou entre a vida e a morte, chegando mesmo a receber a extrema-unçao num
hospital famoso de uma cidade qualquer onde o circo do esporte em que é ao
mesmo tempo Rei e gladiador se exibia. Sabia que havia chegado ao perigosíssimo
limiar entre a vida e a morte pela visão que teve. As luzes cintilantes, o
túnel estreito, a imagem fora de foco, paisagens e rostos familiares, a
regressão avassaladora o sugava para um abismo negro, chegando mesmo a ver seu
corpo inerte na cama. Então algo ocorrera, e o processo todo parou: mergulhou
subitamente num ponto qualquer de si mesmo, onde era incapaz de sair por suas
próprias forças. Após o coma, a recuperação física foi espetacularmente rápida,
deixando os médicos e os milhões de fãs em êxtase pelo mundo afora. Já a
recuperação psíquica, esta ele não estava certo de que a havia concluído.
Acordava por
vezes, em uma piscina de suor, com presságios, visões e muito medo. Algo o
apertava no peito, por dentro, sufocando-o ao limite do desespero. Procurou
ajuda espiritual, mas foi em
vão. Não conseguia se abrir com ninguém, nem mesmo uma irmã
particularmente querida e para quem não guardava segredos. Estava liderando uma
equipe nova, com muitas expectativas, mas os resultados teimavam em decepcionar. Discutiu
asperamente com seus engenheiros e técnicos à respeito do melhor acerto para
seu carro para aquela pista, mas parecia falar uma linguagem desconhecida pelos
demais. Queria a perfeição, ou melhor, exigia de si, para si, e dos outros um
padrão sobre-humano que poucos conseguiam vislumbrar.
Místico, foi
procurar uma cigana há alguns dias e ela disse algo que o intrigou demais:
“Procure conhecer a sua outra metade. Espiritualmente vocês dois são um e a
separação é antinatural. Busque saber mais sobre suas origens”. Aflito foi
buscar respostas, mas a desconversa e os olhares trocados haviam piorado seu
estado de espírito. Voltava à antiga sensação da infância e da adolescência,
quando se sentia incompleto, como se faltasse algo em si. Mergulhou de
cabeça no esporte para unificar seu espírito, corpo e desejo num vetor único, e
havia funcionado. O desconforto havia cessado e a impressão de que lhe faltava
uma metade sumira quase por completo. A visita à cigana fora uma má idéia, mas
não lhe saía da cabeça.
Havia feito
um bom treino e estava confiante para a corrida. Benzeu-se e entrou no carro,
ignorando os aplausos dos fanáticos torcedores italianos quando alinhou no grid de largada. Adorava os fãs, mas no
seu Brasil sentia-se mais aconchegado, em união com a massa de uma maneira
mística e intensa. Olhou em volta e a sensação estranha voltou. Por um átimo de
segundo sentiu estar fora de lugar, como se aquele não fosse o seu habitat e
aquilo fosse completamente novo. Um leve enjôo, como se houvesse bebido além da
conta, absurdo, claro, em vésperas de corrida. Precisava tirar umas férias e a
bela loira com quem estava saindo ultimamente certamente era uma boa razão para
isso. Concentrou-se na corrida e no que iria fazer nas próximas duas horas de
sua vida.
O barulho
infernal de milhares de cavalos de potência a rugir, presos por uma embreagem e
soltos numa explosão de energia, barulho, cores e o estrondo da platéia. Chegou
ponteando na primeira curva e as coisas iam bem. Livrou alguma vantagem nas
primeiras voltas até a intervenção de um carro madrinha, devido a um acidente
entre alguns outros rivais, muito, muito atrás de si. Tudo certo agora, o carro
madrinha apaga as luzes do teto, vai entrar nos boxes, é hora de acelerar fundo
e recuperar aquela vantagem enorme. A primeira curva vem chegando rápido e algo
não está bem. Uma peça, das milhares que compõem a suspensão se rompe e o carro
viajando a mais de trezentos quilômetros por hora, fica desgovernado, corcoveia
e choca-se violentamente contra o guard
rail! O som de metais se rompendo, se fundindo, a tremenda desaceleração demora
a ser assimilado por nosso cérebro.
As luzes
cintilantes, o túnel estreito, a confusão de sons, cores e vozes misturadas, o deja-vu. Ao lado de uma pista de
corridas, visto ao vivo e em tempo real por milhões de telespectadores ao redor
do mundo, jaz o corpo quase inerte de um homem. Seus pés estão ligeiramente
curvos e paramédicos ocultam seu rosto ferido das câmeras intrusas dos papparazi. Um ídolo agoniza em seus últimos
momentos.
Há muitos
quilômetros dali, num quarto de hotel qualquer em Copacabana, outro homem
enfrenta a mesma viagem pelo túnel estreito. O filme ao contrario está rápido e
não dá sinais de que será interrompido antes do final, desta vez As imagens vão
se sucedendo em cascata e o homem, cada vez mais jovem, se torna um garoto
franzino. Agora, algumas cenas na seqüência, o menino é um garotinho chorando
ao ser retirado dos braços de uma jovem mãe, transforma-se em frações de segundos
num bebê e logo num feto. O útero é escuro, confortável e úmido, mas ele não
está sozinho. Há ali dentro, outro de si, disputando espaço, em harmonia, em comunhão. Um clarão
de entendimento cruza as duas mentes, separadas por um oceano e uma vida.
No quarto do
hotel em Copacabana, o homem abre os olhos, a boca seca, o sonho interrompido
mais uma vez. Ao lado da pista, sendo colocado numa maca, o feto sorri e segura
as mãos do irmão delicadamente. Solta-a. Liberta-se da matéria e suspenso,
invisível, pode ver a magnitude da cena abaixo: pessoas acenando suas cabeças
incrédulas com aquilo que realmente está acontecendo. Em Copacabana, o homem,
ainda sonolento e confuso chama por sua Mariela, que está com os olhos grudados
na tela da televisão, desconfortável a acompanhar a imolação daquele
desconhecido. Do lado de fora, nas praias, nos bares, nos lares, nas ruas, um
gigantesco nó se forma numa garganta coletiva. Mariela não entende bem a
dimensão daquela perda, mas sente um vácuo dentro de si.
Desprende-se
um pouco da energia do universo. Um ciclo está a se cumprir e outro prestes a
iniciar-se.
* Quiralidade(do grego, χειρ, kheir:
"mão") é uma propriedade de assimetria importante em vários ramos da
ciência. propriedade que distingue uma
configuração espacial de átomos da imagem especular desta configuração.
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