O velório de Carmelita Vaz
Complicado essa coisa de ir a velórios no verão. Nos filmes americanos e europeus os enterros são chiques, as roupas idem, os cemitérios têm gramados impecáveis e o céu fica pendurado no horizonte de um azul puríssimo. Carmelita Vaz morreu numa segunda-feira em pleno dezembro de sol escaldante e chuvas intermitentes no hemisfério de baixo. Pegou-nos a todos de surpresa, aliás, não propriamente de surpresa, uma vez que muitos acreditavam que ela já estava morta há décadas. Mas ninguém estava preparado para as exéquias de alguém tão, digamos, diferente.
Enquanto ajeitava o nó da gravata num colarinho apertado tentei me lembrar da última e da primeira vez que havia visto Carmelita. Sentimentos contraditórios cruzaram minha mente e os fatos, as datas e os acontecimentos se confundiram numa borra mental colorida e perturbadora. Anos separavam os dois eventos e como num filme em fast forward fui revendo nossa história em comum.
Estamos em Ouro Preto e somos meninos, ambos com os joelhos ralados e shorts folgados, correndo atrás de velhos pneus nas ladeiras da cidade. Depois nos vejo trabalhando no Cine Vitória, vendendo balas, quitutes e ganhando alguns tostões que levamos para nossas respectivas casas. Avançando rapidamente no tempo e no quadro de projeção mental nos vejo rapazes, desembarcando no Rio, capital da República para “vencer na vida”. Carmelita, então Sinésio, conseguiu. Eu continuo a tentar, mas estou começando a desconfiar que, em vão.
A gravata não cede e vou ficando exasperado. Meu neto Francisco, que vai me levar até o cemitério bate de leve na porta, com os nós dos dedos (me enxergo em Francisco e isso me causa desconforto, quero muito mais para ele que o que a vida me entregou) do jeito que eu faço, e pergunta:
— Vô, vamos? Há esta hora já tem muito trânsito, é melhor nos apressarmos.
Faço um sinal de cabeça de leve e volto a pensar em Carmelita. Agora me questiono onde nossos caminhos se separaram e o que causou essa ruptura. Uma mancha escura obscurece meu raciocínio e apenas a memória de sua voz, melodiosa e sempre grave, mesmo depois da “mudança” me assombra. Havia sinais que Sinésio era um pouco diferente, mas nossa amizade era mais profunda que estas coisas banais. Os olhares reprovadores dos outros amigos que foram pouco a pouco se afastando, os cochichos abafados e os risinhos de mofa. Sempre me incomodei mais que ele. Ele, ou ela, simplesmente dava de ombros e dizia: — O destino não se muda. O destino se cumpre!
Apanhei meu chapéu de sobre a cômoda e mesmo com a gravata meio solta, me coloquei em movimento. Em minha idade, sair de casa já não é tão fácil e nem tão agradável. Francisco dirige bem e sua paciência para comigo me emociona sempre. Os outros netos me bajulam ás vezes, pois tenho dinheiro — não há contradição — tenho muito dinheiro, mas a vida me venceu.
Carmelita estava magnífica num vestido longo e vermelho e seu rosto forte e inesquecível estava impecavelmente maquiado. Ao contrario do que pensei, muitas pessoas estavam presentes em seu velório e até um ou dois políticos de média expressão podiam ser notados entre nós. Fechei meus olhos, isolando-me do mundo e pagando minhas últimas homenagens àquele ou aquela que havia sido meu melhor amigo. O único verdadeiro que tivera em meus noventa anos. O que ousara fazer o que eu sempre sonhei e jamais fui capaz: mudar o desígnio da natureza e refazer sua vida a despeito de tudo. Ao amigo a quem eu renegara, um último e arrependido adeus. Até breve, Carmelita!
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