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terça-feira, 5 de junho de 2012
A FOTO
A FOTO
O click veio ao mirar-se no espelho naquela manhã de maio. O espelho sempre estivera ali, cumprindo fielmente sua função de espelhar o rosto e auxiliar no barbear, mas naquele dia em particular, justamente no dia do seu qüinquagésimo - primeiro aniversario, deu-se a revelação. Nada mais seria como antes, e como poderia, afinal, se um despertar desses ocorre, você precisa reagir mudar, tentar, ao menos.
Até aquele dia, Mário era feliz. Muito feliz. Casara-se (por amor, paixão e um descuido reprodutivo) com Ângela, sua paixão de adolescência. Tiveram quatro filhos, três rapazes e uma linda menina, a caçula, Nina. Fizera um concurso publico, sepultando talvez os sonhos de um destino grandioso, mas a segurança proporcionada por um salário e os benefícios que cresciam com o tempo, compensavam as eventuais recaídas de arrependimento. Com o tempo e a nevoa que este traz sobre situações e sonhos do passado, tudo ficara bem. Bem até demais.
A mudança foi brutal, chocante. Era difícil definir de onde partira o ponto de ignição, mas sabia que agora, a partir deste exato momento, nada mais seria como antes. Impossível definir com precisão o motivo de tanto desconforto, mas havia um comichão dentro de si e sabia que teria que fazer algo. Vestiu-se, após barbear-se, alias como fazia todos os dias. Desceu as escadas para o andar inferior e a casa lhe pareceu estranha, como se a visse pela primeira vez. Mal respondeu ao bom dia da empregada que cruzou com ele carregando um fardo de roupas passadas e ao chegar à copa, para o café da manhã de todos os dias, avistou quatro estranhos, que pouca atenção lhe deram.
- Vou dizer uma coisa importante e quero que todos me ouçam – falou em uma voz que reconheceu não usar havia muito tempo, tão autoritária e solene lhe soou.
Mesmo sem muita pressa, Ângela, alguns quilos a mais e a beleza ainda evidente, apesar dos cabelos tingidos que ele detestava, e os três mais velhos, Mario Filho (nada original, mas cedera, sempre cedera às opiniões de Ângela), Paulo e Ricardo o fitaram com uma expressão mixta.
- Vocês são minha família e eu tenho vivido por vocês todos esses anos. Amo a todos e não me arrependo de nada, mas a partir de hoje, e caso não se recordem, hoje é o meu aniversario, as coisas vão mudar por aqui.
Palavras sobrepostas de congratulações, os filhos levantando para abraça-lo (realmente ninguém se lembrava do aniversário do velho), Ângela meio contrariada, pois planejara um jantar surpresa e mesmo ele, jamais se recordava desta data, foram interrompidas com um gesto.
- Parem. Quero que levem isto a sério. Isto é sério!
Os olhares meio debochados dos três filhos o animaram, ao contrario do que poderia se supor.
- Vêm? É disto que estou falando: vocês não me levam a sério, estão tão acostumados em suas boas vidas de burgueses, suas existências medíocres e “babacas” que não percebem o egoísmo que praticam!
Os termos que usava no dia a dia jamais chegariam perto de tamanha vulgaridade. Isso fez com que os filhos, principalmente, percebessem que havia algo de anormal naquele dia. Voltaram a sentar-se e quietos, esperavam por maiores explicações. Ângela tentou abraça-lo, mas foi afastada sem muita suavidade, o que a magoou e fez com que recuasse e sentasse ao lado dos filhos.
O homem de pé, no meio da copa, a mesa posta, os filhos e a mulher o olhando atônitos, era a cena que tínhamos. De repente, veio um branco. Mario olhou a todos, fez um gesto de desistência e disse:
- Bahh.....do que adianta, vocês jamais entenderiam, isso não tem importância.
Sentiu o alivio geral e os sorrisos tímidos voltaram a enfeitar os quatro rostos incrivelmente parecidos, sugerindo que sua contribuição à genética da prole tenha sido um tanto secundária. Ninguém perguntou nada, viraram-se em suas respectivas cadeiras e voltaram a comer. Aquilo o desanimou ainda mais, mas estava decidido. Iria mudar e a mudança já começara, só que pelo lugar errado.
Despediu-se de todos, após receber novamente os votos de felicidades, apanhou seu paletó e dirigiu-se a garagem. Ângela, sua bela e estranha esposa, a quem pensava conhecer tão bem e agora percebia que viver junto de uma pessoa, dormir, e acordar ao seu lado por bons vinte e cinco anos, não garantiam intimidade, o seguiu. Chegando á garagem que ficava sob o belo sobrado, ela lhe disse:
- Querido, você está bem mesmo? Por que não tira o dia de folga? Você trabalha tanto, precisa descansar um pouco, cuidar mais de sua saúde.
Ela jamais compreenderia. Olhou em volta, a garagem super lotada, com quatro carros espremidos entre motos, Jet ski, e outras caras quinquilharias que deixaram de ser favorecidas pelos filhos. Balançou a cabeça e entrou no seu carro, por sinal o mais modesto de todos.
Ao chegar ao trabalho, sua secretaria, dona Simone, uma simpática senhora que já o assessorava há anos, lhe deu os parabéns. Os subordinados haviam preparado uma pequena comemoração com bolo e doces, o que ele suportou estoicamente. Estava confuso e em sua cabeça ainda buscava as razões para a brusca mudança de pensamento, que tivera esta manhã. Até ontem a noite era um homem, feliz na medida em que se pode ser feliz com uma realidade baseada em posses, e sem grandes questionamentos. Agora sabia que jamais seria o mesmo e vasculhava sua mente para o ponto que havia provocado aquela mudança.
A foto! Sim, tinha que ser aquela foto, mas onde estaria ela? Talvez o ângulo com que se olhara no espelho o tenha remetido a uma lembrança trancada há muitos anos dentro de sua mente. Sim, era aquilo! Chamou dona Simone e alegou não estar se sentindo bem, dizendo que voltaria para casa e se melhorasse, a tarde voltaria. Sentou-se no carro impaciente e o transito que sempre lhe irritara estava particularmente lento naquele meio de manhã. Ansioso, procurou vias alternativas e em menos de meia hora estava novamente em casa. Entrou pela garagem, tirou o paletó e dirigiu-se aos fundos da imensa garagem subterrânea de sua bela casa. Começou pelas caixas maiores, aspiradores de pós, brinquedos das crianças, lembranças de outra vida, mais modesta. Ouviu passos na escada e Ângela, espantada em vê-lo novamente ali, demandava uma explicação.
- Estou procurando uma caixa de fotos antigas, as que eu trouxe da casa de mamãe, lembra?
- Meu bem, as fotos estão dentro daquelas malas enormes que compramos naquela viagem à Disney, lembra? Vou te ajudar.
-Não precisa. Eu me viro, prefiro ficar sozinho, se não se importa.
Ângela olhou-o com enorme estranheza, pois certamente seu Mario não era assim, mas resignou-se e voltou a subir para o andar superior, deixando-o entre suas muitas recordações provocadas pelos enormes álbuns de fotos de sua infância e adolescência.
Fotos e mais fotos sucediam-se diante de suas retinas, mas ele sabia qual buscava. Demorou outra boa meia hora até que, finalmente, encontrou-a. Sim, não havia dúvidas, era aquela foto que buscava e sim, reconhecia o mesmo ângulo que o espelho lhe devolvera. O mesmo rosto forte, as sobrancelhas espessas e claras por sobre os olhos de um azul esverdeado que fizera muito sucesso nos idos da década de sessenta, quando o mundo ainda acreditava. Sentou-se a um canto, sem largar a foto e começou a chorar. Baixinho e quase silenciosamente a principio, mas num crescendo não mais conseguia segurar as lagrimas e o choro tornou-se convulsivo. Isso durou alguns minutos e agradeceu pela discrição da esposa que o deixara em paz.
Um filme passou pela sua cabeça e pode ver toda sua infância, seus amigos, seus sonhos e tudo parecia ter sido engolido por uma avalanche de coisas sem importância. Um emprego sem ideais, um dinheiro que nunca bastava, um consumismo desenfreado e sem propósito, mas aquela foto, aquele olhar de um jovem de doze anos lhe trouxeram novamente à razão. Sim, foram os olhos, grandes, sonhadores, cheios de esperança que tinha aos doze anos, que acusadoramente o condenavam agora, quase quarenta anos depois, pelo que havia se tornado. Aquele garoto, segurando-se num tronco de arvore, com shorts curtos e camisa colorida, um kichute velho nos pés e o sorriso mais límpido que jamais tivera, impoluto, agora exigiam que ele voltasse atrás.
Mergulhou num mar de si mesmo e resgatou os sonhos do garoto de doze anos. As travessuras, as dificuldades financeiras de sua família, os ideais. Sabia que mudara e agradecia por isso.
Levantou-se e subiu para a casa. Ângela, interrogação aflita no olhar, apenas o seguiu, silenciosamente. Despiu-se ao chegar ao quarto, tirando primeiro a gravata, símbolo de uma importância que sabia não ter. Sentou-se na cama e olhou para o vazio. Voltou ao banheiro e novamente, o espelho lhe devolveu aquele olhar. Pegou a foto, olhou a confusa e quase desesperada esposa, mirou à sua volta. Pediu para ficar sozinho. Ela saiu silenciosamente do quarto. Ele chorou. Dormiu. Despertou e dirigiu-se ao banheiro, com a foto numa das mãos. Abriu uma gaveta, onde sabia que Ângela escondia um pequeno isqueiro. Segurou-o firme e a chama lhe trouxe outras sensações conflitantes. Ergueu a foto e dirigiu a chama para a borda inferior. Segurou-a, enquanto queimava, pelo tempo que pôde. Soltou o pedacinho de papel queimando dentro da cuba da pia e observou as cinzas. As cinzas da foto e as cinzas do que fora.
Decidiu seguir sua vida da forma que estava. Muito tarde para olhares acusativos. As cinzas queimam e o coração cicatriza. Pelo menos, é o que Mario espera.
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