Um espaço para experiências para lá de pessoais com palavras, textos, ritmo, coesão, consistência e, principalmente, para exercitar a auto disciplina.
quinta-feira, 5 de julho de 2012
SINISTRO
Mãe,
Sei que o que vou escrever a seguir é um tanto incomum, afinal nunca acreditei em médiuns ou espíritos de outro mundo. Não se assuste eu lhe peço. Suplico que leia esta até o final, a despeito de sua fé católica, para então poder julgar e cumprir o pedido que lhe farei no final.
Ao saber que minha transferência para a Inglaterra havia finalmente sido aprovada, fiquei radiante, como a senhora há de se recordar. Afinal de contas, fazia anos que eu lutava por esta promoção e viver no país dos anglo-saxões foi um sonho que acalentei desde pequeno. Ávido leitor, devorei centenas de Agathas Christies, Sherlock Holmes, A. J. Cronins e outros mais. Encantavam-me as narrativas a respeito do interior da Inglaterra, as detalhadas descrições de seu countryside, os costumes e as tradições, a inclemência do inverno.
Quando o avião aproximou-se do Aeroporto de Gatwick, já em sua perna final de pouso, rompendo as barreiras das nuvens, pude ver a beleza da simetria das pequenas casas e seus impecáveis jardins abaixo. Abril é o começo da primavera e os campos sorriem pelo alívio de terminar o longo inverno. Nem mesmo o ruído das enormes turbinas do avião foi suficiente para distrair minha atenção e entrei em devaneio, com o olhar perdido na imensidão verde, e os muitos matizes de cores resultantes do entardecer britânico.
Adaptei-me rapidamente. Estava em casa, como, aliás, jamais estivera antes. Londres fez-me um bem enorme, mamãe, precisava ter visto o seu “menino” desenvolver-se, desabrochar, fazer amigos rapidamente. O respeito dos outros se traduz em podermos ficar sozinhos quando queremos e precisamos, e obtermos companhia quando achamos necessário. A empresa estava em fase de franco crescimento e dentro dela, minha ascensão foi meteórica, Nada a reclamar. Jamais voltei a sentir aquelas dores de cabeça que tanto me debilitavam, nem tampouco a coluna voltou a incomodar-me. Depois fui transferido para Norwich em Norfolk, ao norte.
Aos poucos, fui me esquecendo do passado, de minha vida no Brasil, família amigos tudo. Sei que você se queixou muito de minha indiferença, a demora em responder suas cartas, o “esquecimento” das datas importantes. Peço perdão, mas não foi por acaso: queria mesmo varrer de minha memória muitas coisas que me aconteceram aí, e que você, mamãe, jamais soube.
Em Norwich comecei um capitulo novo de minha vida, como se uma segunda chance me fosse dada pelo destino. Em um livro com mau começo rasgam-se os primeiros capítulos e corrige-se a estória, endireitando enredo, personagens, tudo. Sinto muito se a fiz sofrer em demasia. Às vezes, pensava que ao calar-me, emitia sinais de que estava bem. Tolice minha, mamãe, sua angústia muda era tão poderosa que podia atingir-me do outro lado do Atlântico. Bastava-me deitar a cabeça no travesseiro, e demorar um tantinho a mais para dormir, que eu podia sentir tuas vibrações de mãe, nervosa, aflita, sofredora. Por isso comecei com os soníferos. Para deitar-me e não ter aquele hiato de tempo em que se pode repassar o dia a limpo. Demorava-me o mais possível para deitar, para que quando o fizesse, o sono viesse de forma fulminante, instantânea.
Mas mãe, tudo foi em vão! Algo estranho começou a acontecer e eu passei a me dividir em dois: quando acordado, era um homem feliz e produtivo, cheio de energia, amigos e vida profissional e social intensas. Bastava ceder, após muita luta, aos chamados poderosos de Orfeu, para que o inferno começasse: viajava de volta no tempo, no espaço e preso por grilhões de medo e culpa, tentando gritar, mas tendo a garganta muda, sofrendo incríveis pesadelos delirantes.
Aumentei as doses diárias de remédios. A vida produtiva foi definhando, procurei médicos, mas estes foram incapazes de diagnosticar com precisão qual era o meu problema. Os amigos passaram a me evitar, tornei-me irritadiço e agressivo e após uma tola discussão no trabalho, fui despedido.
Resolvi finalmente enfrentar de vez o demônio que me consumia internamente. Armei-me de toda a coragem possível, não sem antes visitar uma igreja das tuas, mamãe, onde pedi proteção a Ele, em seu nome, claro, pois o meu está com poucos créditos nos lugares que conta. Sei que não se importará com isso, afinal em partes, eu ainda era o seu menino.
Voltei à minha casa. Fechei todas as janelas e decidi não tomar os remédios que me mantinham acordado por dias a fio. Tomei um bom banho quente, e nu, deitei-me no chão, no meio da sala de meu apartamento. Tive a preocupação de remover todos os objetos cortantes ou contundentes, para não me machucar de forma involuntária. De costas contra o carpete frio, olhando o teto, demorei horas a adormecer. Filmes intermináveis de minha efêmera existência foram projetados em frente a meus olhos titubeantes. Vi-me bebê em seu colo e vislumbrei brevemente aquele que chamei de papai. Antes que nos deixasse e nunca mais tocássemos em seu nome. Meu crescimento e infância foram normais, com as inseguranças e os medos comunsde crianças e adolescentes. Em toda a trajetória, um ponto em comum era a sensação de não - pertencer àqueles lugares. O sentimento de estrangeiro em minha própria vida, que sempre me acompanhou, era muito forte.
Mamãe, nesse momento, espiritual e fisicamente exausto, cedi. Minhas pálpebras ficaram muito pesadas, insuportáveis, e se fecharam. A consciência se esvaiu rapidamente e penetrei no labirinto do outro. Imediatamente senti um grande frio, não de fora, mas por dentro, intenso, congelando-me a espinha e causando um arrepio doloroso. A consciência ainda era pouco nítida, mas a familiaridade com o universo do outro era total. De repente me senti mais à vontade ali, do que antes, desperto. Meu corpo estirado no chão duro do apartamento, que o carpete de marca vagabunda não conseguia amortecer, foi se distanciando. Ou melhor, eu fui me distanciando daquele corpo, ora tão familiar, ora tão estranho. O espírito vagou livre, alto, fugindo célere daquela prisão de carne. Fui me elevando e pude ver o teto do edifício, depois o meu quarteirão todo, o bairro e as nuvens empanaram um pouco a visão que teria tido de toda a Inglaterra noturna, apesar de que suas luzes brilhando em profusão faziam uma imagem desfocada, conforme a distancia aumentava. Aos poucos percebi que o país estava muito abaixo, a própria Europa, o Oceano, e não pude, então, deixar de virar-me um pouco para a esquerda em busca do Brasil. Este, mamãe, foi o meu maior erro. Teria conseguido me afastar para sempre, com certeza, se não tivesse olhado. Mas olhei e agora uma força incrível me sugava novamente para baixo, velozmente, com voracidade selvagem.
Pude ver as matas da Amazônia, as luzes das principais cidades do nordeste, a caatinga, o norte, agora centro de Minas Gerais, o rio Grande e estou velozmente me aproximando da fazenda de vovô em Campinas. Mas espere: esse é outro tempo, as coisas são diferentes, onde estão os carros, os edifícios? Tudo o que posso ver são fazendas, estradas de chão batido, charretes, carros de bois e pessoas vestidas de maneira estranha.
A velocidade diminui bastante e estou me aproximando de um telhado novo, de um edifico grande para os padrões da vila em que vou aterrissar. Passo pelo teto, e vejo um precário quarto de hospital. Algumas pessoas em volta de um leito e uma mulher com muita dor, prestes a dar a luz. Mamãe acho que vou reencarnar naquela criança, estranhamente no passado do tempo em que vivemos, e quero apenas que acredite que te amei muito, apesar de que agora, de onde estou e do que sou, não posso dizer pessoalmente. Ah, e perdoe as batidas na parede, ao lado de sua cama, as luzes, as vozes: eu tentei fazer contato sim, mas fui incapaz. As rezas, o exorcismo, os diversos bruxos das seitas muitas que foram benzer tua casa me afastaram de ti, antes que eu pudesse renascer em outro corpo, outro tempo. Aceite esta carta como uma despedida, mamãe, e perdoe-me por ter sido tão covarde.
P.S. – O afogamento daquele que chamamos papai, lembra? Soubemos por cima, boatos apenas. Eu o empurrei daquela ponte onde ele costumava pescar, quando tinha doze anos, e seu corpo foi levado pela correnteza do rio, mastigado pelos peixes e muito deformado, encontrado quilômetros adiante. Está enterrado como indigente no cemitério de P....caso tenha interesse.
P.S2- Mamãe, não pude reencarnar naquela doce criança do passado. Algo deu errado e as forças me puxaram de volta ao limbo. Estou agora, dando expediente, de volta à Inglaterra, em um antigo castelo mal-assombrado, ao norte. Alguém tem que entreter os turistas, afinal!
P.S 3- Reze por mim. A vida de fantasma não é fácil, e já não agüento mais os flashes dos turistas estourando em meus olhos cansados. Reze mamãe
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário