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quarta-feira, 4 de julho de 2012
EM SEU LUGAR
O local escolhido para o velório era caro e sofisticado, certamente foi criado bem depois que me afastei deste lugar. Cheguei quieto e pretendia permanecer invisível. Mas sabia que as velhas tias, os parentes todos, os vizinhos iriam vir falar comigo. Era até natural, sou uma espécie de filho pródigo da pequena cidade, aquele que foi embora, viu e venceu!
A noticia ainda ecoava doloridamente na minha cabeça: “seu pai está morto!”
Aquele pai imperfeito com que a vida e minha mãe me brindaram. Aquele pai que havia significado tanto e no final....sido tão pouco. Tão pouco pai, tão pouco presente, tão pouco gente.
Agora eu podia ver, entre os abraços e as palavras confusas de conforto que a cabeça dele, mesmo deitada, continuava imponente, dentro de seu caixão. Tentei me aproximar, estava difícil, todos querendo me ver, me tocar, falar comigo. Era uma grande confusão e eu parecia estar em transe, talvez armado com um sorriso vazio e disparando palavras ao acaso. Minha mãe, encolhida a um canto, tipicamente acuada, demorou em vir me beijar. Logo quem deveria ter sido a primeira; mas não importa; eu estava ali porque meu pai estava morto. Desta vez fisicamente, uma vez que já havia morrido para mim havia décadas. Mais braços e abraços. Mais votos de pêsames. O salão estava cheio, jamais suspeitei que meu pai tivesse tido tantos amigos em vida.
Cheguei ao lado do caixão. Pensei ter tido uma pequena vertigem, pois a viagem fora longa, cansativa, e ademais, estava muito abafado. Os olhos! Aqueles lindos olhos de um verde profundo, instigantes, observadores, irônicos, estavam abertos, a me fitar, a me decifrar! Não era possível, ele estava morto. Este era o seu próprio velório! Estou sonhando, será que as pessoas não enxergam?
Eu jamais pude ocultar qualquer coisa que fosse do olhar de papai. Jamais. Ele brincava dizendo ser um “bruxo” quando me pegava nas pequenas mentiras que filhos contam a seus pais. Nesse momento, postado ao lado de seu caixão, com o burburinho estranho das pessoas ao fundo, tudo se fez difuso. Fui me aproximando daqueles olhos, abaixando-me, inclinando-me lentamente, como se fosse beija-lo. Os olhos enormes pareciam duas grandes esmeraldas, com um brilho intenso e perturbador. Subitamente, comecei a ver as coisas por outro ângulo. Estranho! Muito, muito estranho. Deixei de sentir meu corpo. Podia ver o teto da...um minuto, este era o teto do salão onde meu pai estava sendo velado! Com horror percebo que vejo pelos olhos de papai. Horror maior, este não é mais seu velório e sim o meu próprio. Reconheço meu filho mais velho ao canto, receoso em aproximar-se. Minha filha grávida, ao lado de seu marido esquivo, tampouco se aproxima. Minha terceira esposa, aquela bem mais jovem, está estranhamente bem disposta, mesmo num vestido negro e justo, que lhe realça a ótima forma. Quero falar, há um engano enorme, eu não deveria estar aqui no caixão, este lugar é de meu pai! Tento abrir a boca, mas algo estranho me impede, parece haver um chumaço de algodão dentro dela. Desesperado, vejo as faces compungidas daqueles que vem lamentar, sem me conhecer, a minha morte. Hipócritas! Eu estou preso, quero sair daqui! Um a um, estranhos, alguns vagamente familiares, se aproximam e prestam os últimos votos de respeito. Reconheço pessoas de muito tempo atrás. Minha mãe continua com a cara de nada, no canto. Aproxima-se alguém com um perfume familiar. Uma mão muito familiar. Olhos verde-esmeralda, com aquele olhar intenso. Um leve muxoxo no canto dos lábios. Meu pai me olha, estou morto, estanque, dentro do caixão que deveria ser dele. Não parece triste. Apenas curioso. Abre lentamente a boca e diz: eu te falei que sou um bruxo...
Cezar F. mais um microcontinho avulso. Bertioga 2012.
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