segunda-feira, 4 de junho de 2012

MITOS E VERDADES

                                         

                                        Mitos e verdades


A boca seca nem importava mais. Os lábios rachados e partidos pela saraivada de socos pareciam bifes de fígado e o cheiro de sangue invadia suas narinas, também machucadas. Tentou fechar os olhos e transportar-se para longe dali, tentou mesmo levitar daquele pobre corpo ferido, despedaçado e muito dolorido. Impossível, pois a cada nova pancada as dores se renovavam e as luzes teimavam em piscar em seu cérebro, como um imenso enfeite de árvore de natal. Já não podia abrir os olhos, pois as pálpebras feridas haviam inchado, tampando toda a visão. Estava com as pernas e os braços quebrados provavelmente, pois apesar de sentir muita dor, havia uma sensação de amortecimento, não podendo movê-los.
Seu treinamento nas selvas e nas colinas de Cuba deveria  preparado-lo para isto, mas a coisa real era bem mais impactante do que poderia imaginar durante o treinamento para guerrilheiro. Nem as maiores provações a que fora submetido pelo temível sargento Gonzáles, íntimo diziam, do próprio Comandante Castro, passava perto em intensidade do momento presente. Até sua captura, desprevenido, totalmente a mercê de seus algozes, lhe parecera uma coisa patética. Tanto preparo, tanto investimento para ser pego justamente no momento em que ia visitar uma velha igreja para orar. Talvez Deus estivesse zangado com ele, pois tentara negar sua crença por diversas vezes, e mesmo que da boca para fora afirmara repetidamente não crer em nada, além da “doutrina.” Estava ciente que com sua formação de sacerdote, os anos de seminário, e principalmente, a fé de sua velha mãe, inabalável e contagiante, sempre haveria um católico por detrás daquele militante comunista.
O Brasil passava por diversas transformações naquele final de década de sessenta do século XX. Os militares haviam tomado o poder e sistematicamente vinham destruindo as resistências, armadas ou não. Grupos paramilitares rebeldes se embrenhavam pelas matas do Araguaia em busca de um reagrupamento, mas era em vão, pois as forças do Exército eram muito mais poderosas e estavam em todos os lugares. Afonso, nosso sacerdote, vinha de um período no exterior e com seu treinamento recém-adquirido fora designado para treinar alguns militantes na resistência armada. Durante meses as rotinas foram enfadonhas e previsíveis, na selva, no calor infernal dos cafundós do país. Quando recebeu ordem para apresentar-se em São Paulo, pois lhe seria dada outra missão, acabou capturado da forma mais prosaica possível, dentro de uma igreja, enquanto se confessava, e não ofereceu resistência alguma, apesar de estar fortemente armado. Não poderia resistir, não dentro da casa de Deus.
No momento em que o alcançamos, sendo duramente torturado, pouco sabia dos detalhes da operação para a qual o haviam escalado. Aliás, nada sabia, além de um nome e um número de telefone. Seus torturadores o interrogavam à velha maneira, ou seja, primeiro batiam muito para quebrar seu espírito, para depois fazer as perguntas. Esse era seu temor, pois se estava apanhando tanto assim sem perguntarem qualquer coisa, quando ele negasse saber algo, a sova seria muito mais pesada. E apesar de todo o seu treinamento militar, e principalmente sua formação como sacerdote, estava perdendo as forças, pois a dor era muito intensa..
Nesse momento, entre as névoas que cobriam seu cérebro, ouviu uma porta abrir-se e as pancadas cessaram. Alguém lhe jogou um balde de água na cara e o levantaram do chão e espetaram seu corpo desconjuntado numa cadeira. Tentou abrir os olhos, mas a dor o dissuadiu. Uma voz forte, mais parecendo um rugido, com forte sotaque nordestino lhe dirigiu palavra
— Pois bem senhor padre Afonso. Finalmente o capturamos. Um peixe grande, até que enfim,  certamente terá muitas histórias para nos contar.
Um frio percorreu-lhe a espinha, pois se era realmente padre e seu nome conferia com Afonso, sabia que de peixe grande nada tinha, muito menos o sobrenome, Sardinha. A ironia naquele momento lhe pareceu cruel e fora de propósito.
— Pois bem, padre. Estamos esperando que comece a cantar e a cantar afinadinho. Queremos todos os detalhes da operação Ponte Nova, tudo.
Afonso não tinha a menor idéia do que estavam falando, mas seu treinamento lhe dizia que tinha que ganhar tempo. Se negasse peremptoriamente não ter conhecimento algum sobre a tal operação, seria liquidado ali mesmo, pois não teria mais utilidade.
— Eu preciso me recuperar. Preciso ajustar meus pensamentos. Preciso fazer alguns contatos, pois não tenho todos os detalhes.
Aquilo surpreendeu o experimentado Coronel Gomes, que esperava um pouco mais de resistência de seu ilustre prisioneiro. Mesmo assim, resolveu ceder e ordenou que o levassem dali e lhe dessem um bom banho e algo para comer. Tinha paciência e tinha tempo, combinação favorável para quem tem objetivos concretos e sabe ser o senhor da situação.

Longe dali, numa chácara no interior de Minas Gerais, homens nervosos andavam em círculos. O mais alto deles, Roberto Pavese, um italiano há muito radicado no Brasil, era seu líder inconteste. Seu lugar-tenente era João Guimarães, um cearense de Sobral, ex-militar e calejado em operações de combate a guerrilhas. Havia mudado de lado quando percebeu serem incompatíveis seus ideais políticos e os do governo que tomara o poder a força de seu ídolo João Goulart. Estavam muito preocupados com as notícias que vinham de São Paulo. A prisão do padre Afonso fora um duro golpe nos planos imediatos do grupo. Poucos o conheciam pessoalmente, mas sabiam tratar-se de qualificado membro da organização e temiam, caso falasse, que colocasse a segurança de todos em risco extremo. Alguns dos presentes eram favoráveis a uma tentativa de resgate, idéia que foi prontamente rechaçada por Roberto. Num dado momento, todos pareciam falar ao mesmo tempo e não se compreendia nada. Roberto bateu seu punho direito no tampo da mesa em que se reuniam e subitamente todos se calaram. Sabiam respeitar seu líder e o desespero não iria levá-los a lugar nenhum.
— Tenham calma, disse Roberto, puxando muito o “l” como fazem os italianos normalmente. Aspeta que io vou a São Paulo saber direitinho o que acontece com nosso padre.
A reunião foi encerrada e aqueles homens muito diferentes entre si, cujo único ponto de tangência era a “causa”, dispersaram-se rápida e silenciosamente. Permaneceram no cômodo apenas Roberto e seu fiel escudeiro, João Guimarães.

Em São Paulo, o Coronel Gomes havia resolvido mudar de tática. Conversava a sós com padre Afonso e era quase amável. Este, razoavelmente recuperado da enorme surra que tomara na véspera, parecia conformado com sua condição e sabia das nuances do processo a que estava sendo submetido. Sua verdadeira preocupação era o que seria feito dele, após seus captores descobrirem que ele efetivamente não tinha informações importantes  e era, portanto, descartável.
De cada lado da pequena mesa que separava os dois homens, tão distintos em seus objetivos, tão diferentes em suas respectivas personalidades, havia tensão. Para o  coronel, obter informações daquele prisioneiro em particular – peixe grande em sua ótica – era uma possível alavanca em sua já procrastinada promoção. A bem da verdade, sua carreira havia estacionado anos antes, e apenas a oportuna insurgência das guerrilhas lhe dera uma sobrevida. Sentia particular prazer em torturas, porque achava que obter confissões “daqueles bastardos” era uma cruzada santa. Sua cruzada.
Cada qual a seu modo buscava jogar melhor as cartas que tinha nas mãos. O coronel possuía força descomunal e paciência. O padre  inteligência e fé. Na cabeça do experimentado militar, apenas uma pecinha não se encaixava naquele complicado xadrez de informações e contra-informações. Fora ele, pessoalmente, que recebera o telefonema indicando onde poderiam prender padre Afonso. Aquela voz com timbre anasalado, mas com sotaque estrangeiro lhe pareceu estranhamente familiar. E tinha a impressão que era de alguém que também detinha muitas informações sobre a guerrilha. Isso, ele teria tempo para averiguar, uma vez que terminasse com o padre.

De volta a Minas, em nossa chácara onde os dois homens, Pavese e João Guimarães continuam a confabular  João pergunta a seu chefe:
— Roberto, só não entendo uma coisa. Se o padre não sabe de quase nada, e poderia ser útil a causa, por que você decidiu entregá-lo?
— Pense comigo —   respondeu Roberto Pavese — nós temos uma causa. E causas precisam de mártires para se consolidar. Quem melhor para o papel de nosso mártir  que um padre?
Após dizer isso levantou os olhos para o céu, como a pedir perdão pelo seu ato.

Em São Paulo, os dias passavam e o complexo jogo de xadrez mental entre os dois homens estava próximo a um desfecho. O final não poderia ser diferente e após muitas tentativas de obter a confissão por meios mais psicológicos, o padre voltou à pequena câmara de tortura. Sua ignorância era tamanha que se confundia com obstinação. Isso irritava seus torturadores e na tarde de uma chuvosa quarta feira, eles exageraram o castigo e o infeliz não resistiu. Seu  corpo deformado foi enterrado numa vala comum, clandestina,  num afastado cemitério nas redondezas da capital paulista. Havia cumprido, involuntariamente, sua nobre missão para a causa  e no futuro, seria um mártir muito valorizado por aqueles que o traíram. A roda da História não cessa seu giro eterno, moendo sonhos e expelindo mitos!





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